O
STF que deveria ser o principal guardião institucional da Constituição
democrática, vem sendo escandalosamente o principal legitimador de sua
violação.
Frente
a um Congresso Nacional enxovalhado por denúncias de corrupção e a um golpista
interino que já assume com esmagadora rejeição da opinião pública, o sistema
judiciário que vai da Lava-Jato a Procuradoria-Geral da República e ao Supremo
Tribunal Federal passou a ser a principal peça de legitimação do golpe. Se é
verdade que até a mais violenta ditadura ou regime de exceção procura uma razão jurídica para cobrir a sua
ilegitimidade, é preciso identificar que a singularidade da situação brasileira
é exatamente que o processo de judicialização está desde o início no centro da
sua viabilização e legitimação. Este foi exatamente o ponto da retórica do
representante dos EUA em reunião da OEA: a legalidade prova que o impedimento
da presidenta pelo funcionamento maduro das instituições da democracia não é
golpe!
Esta
retórica de que o poder democrático migrou definitivamente para o arbítrio de
tribunais veio a público no dia 23 de
abril, em um Fórum promovido pela revista Veja, em palestra do ministro do STF,
Luís Roberto Barroso, e do juiz Moro. A fala do ministro do STF, exatamente
pelo progressivismo de suas posições, é a testemunha mais gritante da defesa do
poder absoluto de sua corporação.
Esta
retórica do poder absoluto do STF compõe-se de três peças. A primeira é a
completa desqualificação da política: “O sistema político é um filme de terror
que, tal como é hoje, reprime o bem e potencializa o mal”. Daí, a sequência
acriticamente apologética: “Se punir corruptos fosse a regra, Moro e Joaquim
Barbosa não seriam heróis nacionais”. Em sua palestra, o ministro defendeu
inclusive o fim do foro privilegiado para políticos em exercício de suas
funções.
Em
seguida, a defesa da completa neutralidade e impossibilidade da corrupção não
apenas do poder judiciário mas de qualquer membro do Supremo Tribunal Federal:
“Acesso no sentido de influenciar com qualquer componente indevido uma decisão
do ministro do Supremo, eu duvido muito que isto aconteça. Acho que isso é uma
não possibilidade, isso, simplesmente, não acontece.”
A
terceira peça retórica é a afirmação do sentido absoluto do STF, isto é, a sua
posição de decidir por último e de forma incondicionada na democracia: “É
impensável que alguém tenha a capacidade de paralisar as investigações. Ou que
qualquer pessoa pode ter acesso ao Supremo para parar as investigações. O
ministro que chega ao Supremo só responde à sua biografia e a mais ninguém.”
Esta
retórica deve ser justa e democraticamente
denunciada como uma retórica do Terror
judicial. Pois é exatamente - como se estuda nas teorias republicanas
e democráticas – quando se
judicializa plenamente a democracia que
mais se politiza o poder judiciário. É exatamente o contrário do que afirma
Barroso: torna-se impensável, uma não possibilidade, em que em um ambiente de
acirradas lutas judicializadas, o poder judiciário não seja, ele próprio,
vazado, atravessado e submetido às forças políticas em luta pelo poder.
Moro
e Joaquim Barbosa não são “heróis nacionais”. São personagens midiáticos de um
populismo penal que foram mitificados exatamente porque utilizaram seu poder
seletivamente para punir políticos aos quais as grandes empresas de mídia fazem
oposição.
Quando
à afirmação de que “um juiz do Supremo só deve responder à sua biografia”, ela
não passa de um delírio escandaloso de poder absoluto. Até a tradição que
legitimava o poder absoluto dos reis afirmava que eles, afinal, deviam prestar
contas a Deus por seus atos. E não apenas a si próprios. Está na Constituição
democrática brasileira que um juiz do Supremo pode vir a sofrer impedimento
caso cometa crime de responsabilidade contra a Constituição que deve
defender.
Treze
perguntas e uma sentença
Qualquer
tribunal , que seguisse os preceitos democráticos e de defesa dos direitos
humanos da ONU, decidiria exatamente em oposição ao STF brasileiros nas treze
questões seguintes. Não há como negar que o STF brasileiro vem sistematicamente
decidindo, por abuso de poder ou por vergonhosa omissão, contra a Constituição
e contra as leis democráticas.
Pode
um juiz federal decretar prisões em série por tempo indeterminado de acusados
antes de serem julgados, passando por cima da presunção da inocência, do
direito de defesa, do devido ônus da prova, por cima de razões excepcionais e
legítimas que justifiquem a prisão cautelar?
Pode
um juiz federal ou a procuradores federais dirigirem um processo de acusação
que viola diariamente o segredo de justiça previsto em lei, que vaza de forma
seletiva e politicamente orientada delações premiadas para empresas de mídia
partidarizadas?
Pode
um juiz federal e um procurador-geral da República repassar para uma empresa de
mídia gravações telefônicas criminosas, obtidas sem autorização, da presidente
da República?
Pode
um juiz federal mandar grampear escritórios de advocacia que atuam em defesa
dos acusados em processo que dirige?
Pode
um juiz federal, de forma reiterada, e de forma acintosamente midiática contra
um ex-presidente da República, impor depoimentos coercitivos a pessoas que nem
estão indiciadas e que se dispõem civilmente a prestar depoimentos?
Podem
agentes da Polícia Federal responsáveis por dirigir investigações, de profundo
impacto político, promover publicamente campanhas de difamação da presidente da
República?
Pode
um membro do STF emitir juízos partidários, reunir-se secretamente e promover
seminários com lideranças partidárias que o indicaram para ministro, defender e
violar escandalosamente o princípio da imparcialidade em julgamentos a favor de
seu partido?
Pode
um ministro do STF de públicos e notórios vínculos, protagonismos e juízos
partidários presidir um Tribunal Superior Eleitoral?
Pode
um STF impedir a posse, por decisão monocrática, de um cidadão ex-presidente
não indiciado ou sequer acusado de tomar posse como ministro e, logo depois,
permitir que nove ministros investigados por corrupção assumam seus cargos em
um novo governo ilegítimo?
Podem
ministros do STF sistematicamente omitirem juízos públicos prévios a processos
que irão julgar sem o exame qualificado das razões que virão a justificá-los?
Pode
o Procurador-Geral da República vazar criminosamente trechos de delação
premiada, sob segredo de justiça, de um senador que acusa a presidenta Dilma e
o ex-presidente Lula para justificar midiaticamente um pedido de seus
indiciamentos?
Pode
o STF, casuisticamente e sem amparo legal,
decidir em horas a prisão de um senador flagrado em fala gravada sem
autorização judicial de manifestar intenção de influenciar ministros do STF e,
logo depois, nada decidir sobre outro
senador, presidente de um partido, ministro e reconhecido com um dos principais
articuladores do golpe parlamentar, que declara haver conspirado com ministros
do STF para abafar a investigação sobre corrupção?
Pode
o STF permitir que um presidente da Câmara Federal, gravemente denunciado e com
provas robustas de corrupção sistemática, dirija e organize o processo de
impeachment de uma presidente sob a qual não pesa nenhuma acusação?
Enfim,
uma sentença. Vários ministros do STF, com exceção de dois, já anteciparam seus
votos de que não são a favor de um julgamento de mérito do processo de
impeachment por crime de responsabilidade em razão de um princípio de
“auto-contenção” do poder Judiciário frente ao poder do Congresso Nacional. O
argumento é claramente inconstitucional: a Constituição prevê exatamente que o
papel do STF, tendo como referência os princípios previstos na constituição,
zele para que nenhum dos poderes da República cometa abusos de poder. Se não há
crime de responsabilidade claramente tipificado, o processo de impeachment é
golpe. O que caracteriza o mais grave abuso de poder!
Nem
coerente é: o STF não decidiu pelo “afastamento temporário” do presidente da
Câmara mas, oportunisticamente, só após a votação do impeachment na Câmara
Federal? A auto- contenção só vale para legitimar o golpe, para tirar sua
mancha após o acontecido? Ou para favorecê-lo como no caso do impedimento
arbitrário da posse de Lula?
Se
o STF decidir pela legalidade do impeachment, então, ele terá consolidado – uma
teoria republicana e democrática não autorizaria senão este juízo – o seu insubstituível papel de Supremo
Tribunal da Farsa!
Democracia
contra o Terror judicial
Se
é verdade que o STF assume crescentemente o papel de principal fiador do
governo golpista e ilegítimo de Temer – que está sendo escandalosamente
protegido de ser indiciado pelo
Procurador-Geral da República, apesar de inúmeras denúncias e provas de
corrupção - , então, a denúncia da inconstitucionalidade de suas decisões, de
seu arbítrio, de seu casuísmo sempre a favor do golpe, de sua evidente
parcialidade, deve ocupar um lugar central
na luta democrática.
Esta
luta democrática deve ser travada em dois níveis, nacional e
internacionalmente. Em primeiro lugar, é preciso dar voz, dar publicidade,
ouvir e amplificar as razões da imensa
massa de juristas que vêm criticando, denunciando e condenando o processo de
judicialização do golpe. O povo brasileiro precisa hoje das razões do
constitucionalismo democrático e republicano para defender seus direitos como
de um pão para quem tem fome.
Em
segundo lugar, já é hora da Frente Brasil Popular e da Frente Povo sem
Medo colocarem no centro da pauta o
impedimento do ministro Gilmar Mendes, como já propôs o sempre brilhante
colunista Jefferson Miola, e uma campanha pública para que o STF julgue pela
ilegalidade do impeachment sem crime de responsabilidade.
É
o caminho democrático e republicano na luta contra a corrupção que deve
prevalecer. O que o STF está a fazer, de fato, é proteger a grande coalizão
PSDB/PMDB que hoje organiza a impunidade dos corruptos.
http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FUm-Supremo-Tribunal-da-Farsa-%2F4%2F36190
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