“Se
Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação num partido qualquer,
Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”. A fala do então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, em 2009, véspera do pleito que elegeria Dilma
Roussef como sua sucessora, ganha novo sentido com a conturbação que hoje afeta
o governo da presidente. Na época, Lula respondia aos questionamentos de
Kennedy Alencar, então repórter na Folha de S. Paulo, sobre os acordos que fez
durante seus dois mandatos. Hoje, no entanto, soa como uma sombria premonição,
com a figura de Judas se projetando sobre o vice-presidente Michel Temer, há
pouco menos de um ano escolhido por Dilma para harmonizar as relações do
governo com o Congresso.
Tido
como um grande conciliador, ponderado, político de bastidor, pouco afeito a arroubos,
cauteloso, plácido, formal, sóbrio, conseguiu se contrapor a todos esses
adjetivos desde então, transformado em líder ativo e bem visível na tentativa
de impeachment da sua colega de chapa. Os amigos próximos culpam o veneno da
imprensa sobre a relação dos dois como justificativa para este comportamento,
mas Temer se envolveu inclusive em episódios burlescos, como o envio e
vazamento de uma lamuriosa carta em que reclama, entre outras coisas, da
persistente falta de espaço no governo.
Michel
Temer foi, desde o início, empurrado goela abaixo do PT. Presidente do PMDB que
era, na época, dono da maior bancada da Câmara, com 91 deputados, e a maior do
Senado, com dezoito senadores, mais nove governadores que respondiam por quase
30% do Produto Interno Bruto, além de 1.201 municípios, entre eles seis
capitais, e 3.500 vereadores, Temer sentou para negociar sua participação na
chapa de Dilma cheio de demandas. Apesar de tentativas de Lula em buscar
alternativas a ele – era considerado ardiloso e voraz ao negociar posições e
sem nenhuma expressão eleitoral –, Temer ficou na vaga e ajudou a aumentar
consideravelmente o tempo de propaganda eleitoral na TV.
O
historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor titular de história do Brasil
da Universidade de Paris - Sorbonne, antecipou como terminaria este acordo em
um artigo seu publicado na Folha de S. Paulo no dia 25 de outubro de 2009:
“Levado adiante, o impasse poderá transformar a ocupante do Alvorada em refém
do morador do Palácio do Jaburu. Talvez, então, Temer tire do colete uma
proposta que avançou alguns anos atrás. O voto, num Congresso aos seus pés, de
uma emenda constitucional instaurando o parlamentarismo. Em outras palavras,
complicada no governo Lula, a aliança PT-PMDB pode se tornar desastrosa num governo
Dilma em que Michel Temer venha a ocupar o cargo de vice-presidente”. O
historiador termina o artigo lembrando a fala – então recente – de Lula a
respeito de Jesus e Judas. “A declaração de Lula sobre a eventual aliança de
Jesus e Judas deu lugar a um extravagante debate teológico. Mas a questão
essencial é mais terra a terra. E só o futuro dirá se a frase de Lula terá sido
uma simples metáfora ou uma funesta premonição”.
Era
mesmo uma funesta premonição e hoje, Luiz Felipe reafirma sua posição. “Você
por acaso imagina o José de Alencar fazendo algo parecido com o Lula? E o
(Marco) Maciel com Fernando Henrique (Cardoso)? Nem pensar!”, diz. O professor
ressalta, como fez há sete anos, o desequilíbrio da relação entre Dilma, uma
presidente inexperiente, e Temer, um vice que controla o PMDB e nunca havia
ganho uma eleição. “Ele próprio foi um deputado com votação muito fraca, nunca
foi uma liderança popular. Isso gerou um nítido desequilíbrio”, afirma. A
mudança no comportamento de Temer também não surpreendeu o professor. “Houve no
meio tempo uma camada de erro da presidenta Dilma e o Temer entrou nesse vazio.
Ela errou mais do que devia, mais do que tinha direito de errar”, diz. Ente os
erros da presidente apontados pelos analistas está a extrema hegemonia do
partido, que na definição de Geddel Vieira Lima, presidente do PMDB baiano e
aliado de Temer, “É como mandacaru. Não dá espaço nem sombra pra ninguém” – e a
lentidão na reação aos movimentos do gigante PMDB, uma postura que acabou
comprometendo a já difícil relação entre Dilma e seu vice. Para o assessor
parlamentar Marcos Verlaine da Silva Pinto, do Departamento Intersindical de
Assessoria Parlamentar (Diap), a história que deu na debandada do PMDB e na
ameaça de impeachment começou muito antes. “Passa pela saída de Henrique Alves
da presidência da Câmara seguida da eleição de Eduardo Cunha”, diz, uma derrota
desastrosa para o governo – Alves deixou a presidência no início de 2015. “O
Temer entra meio que avalizando esses movimentos: a saída do Henrique Alves,
que tinha uma relação mais equilibrada com o governo e o PT e a entrada do
Cunha, que enfrentou o governo. Não queria mais ir acorrentado negociar”, diz o
assessor, para quem o grande erro do governo foi não ter colocado mediadores
para impedir que isso acontecesse. “Faltou o cuidado que se teve no primeiro
governo de Dilma, quando cada partido presidiu por um biênio e foram feitos
acordos, para não colocar em plenário as pautas bombas”, explica.
Nada
disso aconteceu à revelia de Temer, que no entanto, permaneceu até a véspera do
rompimento como um provável conciliador. O PMDB continua sendo o maior partido
brasileiro – são sete governadores, quatro vices; 67 deputados; 17 senadores;
142 deputados estaduais; 996 prefeitos, dois em capitais; 817 vice-prefeitos e
7.935 vereadores –, agora desembarcado formalmente do governo e Temer, antes de
se licenciar da presidência do partido no dia cinco de abril, deu ordens para
que todos os correligionários abandonassem seus cargos. Dos sete ministros, no entanto,
até o fechamento desta reportagem, apenas um havia saído – o próprio Henrique
Alves, alocado no Turismo, 1 dia antes do rompimento oficial do PMDB com o
governo –, e muitos analistas avaliam que poucos sairão, seja no primeiro ou no
segundo escalão. O que pode fazer com que, mesmo fora do governo, o partido não
se comporte necessariamente como oposição.
Uma
leitura da história de participação do PMDB em campanhas presidenciais dá
sentido ao comportamento aparentemente contraditório de Temer. A última vez que
o PMDB lançou um candidato próprio a presidente foi em 1994, quando Orestes
Quércia perdeu a disputa. Mesmo derrotado, volta ao Planalto três anos depois,
com Itamar Franco, vice do presidente destituído Fernando Collor. Na época, o
deputado – e jurista de renome – Temer avaliou que o impeachment não precisaria
necessariamente ter uma base jurídica. Para ele, a incapacidade de governar
justificaria a destituição.
Desde
então, o partido fez alianças com todos os governos. Esteve nos dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso – ocupou dois ministérios na primeira gestão, e
quatro na segunda. Em 2002, para se manter no poder, ficou dividido entre o
Senado, onde se aliou ao PT, e a Câmara, apoiando a candidatura tucana. Apesar
de ter aderido de forma homogênea ao PT no primeiro mandato de Lula, essa
divisão entre Senado, atualmente nas mãos de Renan Calheiros, e a Câmara, sob o
comando de Eduardo Cunha, aparentemente se mantém, já que os dois representam
correntes diferentes dentro do PMDB, o que complica ainda mais o processo em
curso. Temer é apontado como o primeiro líder peemedebista capaz de unir
novamente o partido desde a debandada das suas grandes figuras para o PSDB, nos
anos de 1980, o que estaria na base deste movimento de alianças nos pleitos
majoritários.
Com
ou sem impeachment, o futuro que se desenha é de caos político e muitas
dificuldades nas áreas econômica e social do País. “Nenhuma solução será
tranquila. Se Dilma ficar, a crise econômica e a ameaça de desemprego
persiste”, afirma Marcos. Ele explica que a impaciência dos empresários com o
que a direita neoliberal chama de “política desenvolvimentista e
intervencionista” cria um ambiente incerto. “Os empresários não querem mais
esse governo e estão paralisando os investimentos. Isso gera desemprego e
paralisa a economia, já afetada pela crise internacional”, explica. Se Dilma
cair, Temer assume com a pecha de golpista – o Judas de que falava Lula.
“A
crise econômica vai sair da pauta, mas com as mídias sociais isso não vai
impedir uma forte reação a ele. Considerando o plano de governo que ele de
forma precipitada apresentou, o ‘Ponte para o Futuro’, vamos viver uma volta ao
passado”, diz Marcos. Que implica em perdas de direitos adquiridos nos últimos
20 anos pela maioria da população.
Um
resumo das propostas em discussão neste plano, feito por analistas do gabinete
do senador Roberto Requião, explica o que Marcos está chamando de “volta ao
passado”. Temer quer, entre outras coisas, o fim ou severa restrição aos
subsídios da política industrial e de comércio exterior brasileira; Henrique
Meirelles ou Armínio Fraga no Ministério da Fazenda; não usar mais o excesso de
rendimento do FGTS como fonte de recursos a “fundo perdido” para subsidiar e
financiar o programa Minha Casa, Minha Vida; estender o Pro-Uni para o ensino
médio; limitar o Pronatec, sistema de cursos profissionalizantes rápidos para a
camada mais pobre da população; limitar as concessões de empréstimos estudantis
pelo Fies; concentrar os programas sociais apenas aos mais miseráveis, os 10%
mais pobres, que vivem com menos de 1 dólar por dia; intervenção no Sistema
Único de Saúde (SUS); fim de todas as indexações.
Além
de reduzir de forma radical a presença do Estado e acabar com o que puder dos
programas sociais que deram relevância aos governos petistas, o “Ponte”, como o
programa vem sendo chamado, propõe medidas que esvaziam o Executivo e coloca as
decisões nas mãos do Congresso, criando um semi-parlamentarismo de fato. Como
por exemplo, o “Orçamento com base zero”, definido no resumo como uma norma que
determina que “a cada ano todos os programas estatais sejam avaliados por um
comitê independente, que poderá sugerir a continuação ou o fim do programa, de
acordo com os seus custos e benefícios”. Ou então a proposta de criação de uma
instituição que articule e integre o poder Executivo e o Legislativo, uma
espécie de autoridade orçamentária, com competência para avaliar os programas
públicos, acompanhar e analisar as variáveis que afetam as receitas e despesas,
bem como acompanhar a ordem constitucional que determina o equilíbrio fiscal
como princípio da administração pública.
A
análise feita pela equipe de Roberto Requião avisa: “Isso foi recentemente
aprovado no Senado em uma votação relâmpago com muito pouco acesso ao
contraditório. É mais uma medida do projeto de limitar o poder do Executivo e
criar um semi-parlamentarismo de fato. Estabelecer um limite para as despesas
de custeio inferior ao crescimento do PIB, através de lei, após serem
eliminadas as vinculações e as indexações que engessam o orçamento. Isso gerará
estagnação econômica, dificuldade de sair da recessão e pode tornar o País
ingovernável a menos que acabe ou desmonte boa parte dos programas sociais”.
Amigos
de Temer, que mantém com ele relações mais domésticas, e ouvidos pela
reportagem de Caros Amigos sob anonimato garantem que ele seria dono de
qualidades pouco comuns entre políticos, como a lealdade e uma aversão aos
holofotes. Mas uma pequena vaidade, a de poeta, foi revelada em uma entrevista
na revista Piauí, publicada em 2010, onde declama seus versos para a repórter,
que virariam livro lançado em 2013. Na mesma entrevista, a filha Clacissa
intervém e diz que o pai se preparou a vida toda para assumir os cargos mais
altos na hierarquia política. Outra filha, Luciana Temer, decidiu romper com o
PMDB, contrariando a orientação do pai, para continuar na Secretaria de
Assistência Social da administração petista de Fernando Haddad, em São Paulo.
Com
75 anos e na vida pública desde o governo do criador do bordão “rouba mas faz”,
Ademar de Barros, a partir de 1963, quando foi chefe de gabinete do secretário
de Educação, Ataliba Nogueira, Michel Miguel Elias Temer Lúlia fez muita coisa
até aqui. Filho de libaneses, caçula de uma família de Tietê, no Interior
paulista, cumpriu seis mandatos de deputado federal, de 1987 a 2011, o primeiro
como suplente; foi líder em várias legislaturas e presidente da Câmara em 1997,
1999 e 2009.
Articulou
o apoio do PMDB a Paulo Skaf, que hoje conduz a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp), e todo o séquito que a segue, para a linha de
frente na briga pelo impeachment. Ao mesmo tempo, tem seu pupilo, Gabriel
Chalita, na administração de Fernando Haddad, na Prefeitura paulistana.
Católico, professor de direito e advogado, em 1983 ocupou o posto de
procurador-geral do Estado e depois, secretário de Segurança Pública. Em 1992
seria novamente chamado, por Luiz Antonio Fleury Filho, para gerenciar o
estrago provocado pelo assassinato de 111 presos no Carandiru, um episódio que
se tornou emblemático da violência do Estado. Temer mostrou quão eficiente pode
ser ao se dispor a conciliar e o seu bom desempenho nesta ocasião o levou para
a Secretaria de Governo, cargo que o colocava como o segundo na hierarquia do
Palácio dos Bandeirantes, responsável pela articulação política.
Como
nem tudo são flores, guarda também alguns esqueletos. No mesmo ano em que deu o
seu maior passo rumo ao Planalto, aparecem indícios de que teria recebido US$
345 mil em propinas da Construtora Camargo Corrêa entre 1996 e 1998, levando-o
a dizer na época, que este seria o seu “pior momento da carreira”. O nome de
Temer aparece 21 vezes numa lista apreendida pela Polícia Federal durante a
Operação Castelo de Areia, aquela que terminou em pizza em 2010, anulada pelo
Supremo Tribunal Federal. Esse “pior momento” iria ainda se repetir outras
vezes. Ele aparece no caso conhecido como Mensalão do DEM, no Distrito Federal,
acusado por um dono de jornal de ter recebido dinheiro para afastar do partido
o ex-governador Joaquim Roriz.
E
ainda na atual Lava Jato, em ao menos duas delações premiadas: na do lobista
Júlio Camargo, aparece como um dos três membros da “irmandade” formada por ele,
Renan Calheiros e Eduardo Cunha, representados por Fernando Soares, o Baiano,
apontado como principal operador do PMDB nos esquemas investigados na
Petrobras. A segunda citação está na delação do senador Delcídio do Amaral, que
responsabiliza o vice pela indicação de Jorge Zelada para a diretoria da Área
Internacional da Petrobras. O terceiro esqueleto foi produzido por “fogo amigo”
– em uma troca de mensagens com o dono da construtora OAS, José Adelmário Pinheiro,
Eduardo Cunha reclama que o empreiteiro deu dinheiro a Temer – R$ 5 milhões – e
não aos demais líderes do partido. A denúncia veio do procurador-geral da
República, Rodrigo Janot.
Juntamente
com elogios à sua capacidade de conciliação, os jornais têm destacado a sua
facilidade em sair ileso desses episódios, ao menos até no momento. Nos
primeiros dias de abril, Temer voltou a ser objeto de ações, com pedidos de
impeachment, indicando que se o governo Dilma cair, tem grandes dele também não
ficar. É a traição ao traidor.
Na
revista Caros Amigos
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/05/o-temivel-articulador-do-golpe.html?spref=tw
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