Jornal
GGN - Em artigo publicado no Estadão, os advogados Antônio Cláudio Mariz e Ives
Gandra Martins comentam a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que permite
prisões antes do julgamento dos recursos cabíveis aos tribunais superiores.
Para eles, há uma expectativa da sociedade pela condenação diante de uma
acusação criminal, que acaba deixando de lado a possiblidade de condenação
injustas e de pessoas inocentes.
Ives
Gandra e Antônio Mariz argumentam que a decisão atinge a cláusula pétrea da
presunção de inocência, "considerando definitivamente culpado ainda quem
não o é", situação classificada como "esdrúxula". Leia mais
abaixo:
Do
Estadão
Prisão
antecipada, erro judiciário à vista
Por
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira e Ives Gandra da Silva Martins
Parcela
numericamente expressiva da sociedade brasileira deve estar exultante com a
recente decisão do Supremo Tribunal Federal que permite o cumprimento da pena
antecipadamente, quando do julgamento em segundo grau, antes, pois, do trânsito
em julgado da decisão condenatória. Como a expectativa diante de uma acusação
criminal é sempre pela culpa e pela condenação, e nunca pela inocência e pela
absolvição, a sociedade, em face do crime, espera a inevitável prisão como
única resposta ao crime. Esquece-se, no entanto, da possibilidade de
condenações injustas, de inocentes, bem como se olvida de que todos os seus
membros e cada um deles poderão ser vítimas de acusações e punições imerecidas.
O
STF, após anos de orientação em contrário, entendeu por bem permitir prisões
antes do julgamento dos recursos cabíveis aos tribunais superiores. Mas essas
prisões poderão ser anuladas pelo próprio Supremo Tribunal e pelo Superior
Tribunal de Justiça.
Dos
11 ministros, sete alegaram que o longo percurso dos recursos especial e
extraordinário, e de outros opostos posteriormente, emprestam um sentido de
impunidade e acarretam muitas vezes a prescrição da ação penal. Ora, não se há
de falar em impunidade, uma vez que já houve condenação. Quem é condenado já
está sendo punido. Aliás, a mera existência de um processo já constitui uma
pena. A execução da condenação é um complemento e só sob uma óptica
exclusivamente prisional é que se entende a prisão como exclusivo sinônimo de
punição.
Quanto
à prescrição, bastaria o Supremo decidir que o trânsito em julgado das
condenações ocorreria com o julgamento dos recursos especial e extraordinário,
retirando dos recursos posteriores o condão de impedir o trânsito, pois
efetivamente há abusos e tais medidas na maioria dos casos são meramente
protelatórias.
O
artigo 60 da Constituição federal, em seu parágrafo 4.º, estatui que “não será
objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir
dentre outras cláusulas os direitos e garantias individuais” (inciso IV). Um
desses direitos é exatamente a presunção de inocência (artigo 5.º, LVII), ou
seja, somente após o trânsito em julgado de qualquer decisão condenatória
poderá o acusado ser considerado culpado.
Com
a nova orientação do Supremo – não unânime, diga-se, quatro ministros não a
acataram –, a cláusula pétrea da presunção de inocência foi atingida, eis que
se está antecipando o trânsito em julgado, com desprezo pelas decisões futuras
dos recursos cabíveis, e considerando definitivamente culpado ainda quem não o
é. Situação esdrúxula, porquanto parece que o trânsito já ocorreu, com a quebra
da presunção de inocência, mas ao mesmo tempo não ocorreu, pois a decisão pode
ser reformada e o condenado, inocentado.
Lembre-se
que com uma fundamentação um pouco diversa foi apresentada no Congresso
Nacional a denominada PEC dos Recursos, cujo escopo primordial era também
permitir o cumprimento da pena após a decisão de segunda instância. Não foi
aprovada. Ou melhor, agora parece ter sido, não pelo Congresso Nacional, mas pelo
Poder Judiciário, que mais uma vez legislou. Desta feita, com desrespeito ao
artigo 60, aos princípios da presunção de inocência e da ampla defesa, em nome
dos quais até outro dia impedia prisões antecipadas, salvo nos casos
excepcionais das prisões cautelares.
Note-se
que a referida PEC ao menos procurou manter uma coerência doutrinária e
sistêmica, pois para permitir a execução da pena em segundo grau declarou
ocorrer o trânsito em julgado das decisões condenatórias naquele momento e
aboliu os recursos especial e extraordinário. Criava a possibilidade de ações
rescisórias em substituição desses recursos. Foi uma construção cerebrina, que
sofreu emendas ao projeto, afinal, não aprovado.
Já
a decisão do Supremo pura e simplesmente viola a cláusula pétrea da presunção
de inocência, pois sem aguardar o trânsito em julgado executa a pena
proclamando culpado quem poderá ser inocentado.
Aliás,
com a orientação correta de não executar prematuramente a prisão, inúmeras
condenações anuladas evitaram indevidos cumprimentos de pena. Cumpre salientar
que aproximadamente 30% dos recursos extraordinários interpostos são providos
para reformar condenações anteriores. Porcentual semelhante deve ser encontrado
nos julgamentos dos recursos especiais pelo STJ. Há anos o ministro Ricardo
Lewandowski, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 144, afirmou
que 28,5% dos recursos examinados pelo STF eram providos. Portanto um terço dos
condenados foi declarado inocente.
Imagina-se
o número de prisões que serão decretadas, com a antecipação de execução de
penas ainda não definitivamente confirmadas. Prisões que, com a eventual
reforma dos acórdãos, se mostrarão injustas, inadequadas, desumanas, fruto de
uma cultura punitiva, na verdade, uma cultura do castigo e da vingança, que,
infelizmente, está se disseminando, tendo a mídia como seu principal arauto,
por todos os segmentos sociais e mesmo pelas instituições pátrias.
Espera-se
que o entendimento do Supremo, aliás desprovido de caráter vinculativo, não
obrigando os tribunais do País, venha a ser repensado e modificado, até porque
quatro de seus ministros não o aceitaram, para que a liberdade individual só
venha a ser, quando e se for o caso, atingida num momento processual adequado
(trânsito em julgado) evitando-se, assim, que ela venha a ser sacrificada, para
posteriormente reconhecer-se a injustiça desse sacrifício, que, no entanto, já
terá produzido efeitos irreparáveis.
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
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