Vimos
um espetáculo lamentável na sexta-feira, 4 de março. Este dia ficará marcado
como “o dia em que um ex-presidente da República foi ilegal e
inconstitucionalmente preso por algumas horas”, sendo o ato apelidado de
“condução coercitiva”. Sem trocadilho, tucanaram a prisão cautelar.
Nem
preciso dizer o que diz a Constituição acerca da liberdade e sobre o direito de
somente se fazer alguma coisa em virtude de lei, afora o direito de ir e vir.
Todo o artigo 5º da CF pode ser aplicado aqui.
Mas,
em um país em que já não se cumpre a própria Constituição, o que é mais uma
rasgadinha no Código de Processo Penal, pois não? Há dois dispositivos aplicáveis: o artigo 218
(caso de testemunha) e 260 (caso de acusado — Lula é acusado? Lula é indiciado?
Lula é testemunha?) do Código de Processo Penal diz que
Art.
218 - A testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual
foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente.
Art.
260 - “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório,
reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a
autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Parágrafo único: “o
mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no artigo
352, no que lhes for aplicável”.
Ora,
até os minerais sabem que, em termos de garantias, a interpretação é restritiva.
Não vale fazer interpretação analógica ou extensiva ou dar o drible
hermenêutico da vaca. A lei exige
intimação prévia. Nos dois casos.
Mais:
a condução coercitiva, feita fora da lei, é uma prisão por algumas horas. E
prisão por um segundo já é prisão. Pior: mesmo que se cumprisse o CPP, ainda
assim haveria de ver se, parametricamente, se os artigos 218 e 260 são
constitucionais. A resposta é: no mínimo o artigo 260 é inconstitucional (não
recepcionado) porque implica em produção de prova contra si mesmo. É írrito.
Nenhum. Sim, sei que o Supremo Tribunal Federal disse que a condução coercitiva
é possível. Mas não nos moldes do que estamos discutindo aqui. Cabe(ria) a
condução nos termos do que está no CPP. Recusa imotivada, eis o busílis. Não atender
a uma intimação: essa é a ratio. E,
acrescento: o STF não foi instado para falar da (in)constitucionalidade do
artigo 260. Mas, mesmo que o STF venha a dizer que o dispositivo foi
recepcionado, ainda assim haveria de se superar a sua literalidade garantista e
garantidora: a de que só cabe a condução nos casos em alguém foi intimado e não
comparece imotivadamente.
Logo,
o ex-presidente Lula e todas as pessoas que até hoje foram “conduzidas
coercitivamente” (dentro ou fora da “lava jato”) o foram à revelia do
ordenamento jurídico. Que coisa impressionante é essa que está ocorrendo no
país. Desde o Supremo Tribunal Federal até o juiz do juizado especial de
pequenas causas se descumpre a lei e a Constituição.
Assim,
de grão em grão vamos retrocedendo no Estado Democrático de Direito. Sempre em
nome da moral publica, do clamor social, etc. Quando Procurador de Justiça, os
desembargadores da 5ª Câmara e eu colocávamos a mão no ouvido para ver se
ouvíamos o clamor social. Sim. Para prender, basta dizer a palavra mágica:
clamor social e garantia da ordem pública. Não são mais conceitos jurídicos, e,
sim enunciados performativos. É como se o juiz, usando de sua livre apreciação
da prova (eis a ironia da história — 99% dos processualistas penais nunca se
importaram com a livre apreciação, ao ponto de estar intacto no projeto do
NCPP) — tivesse um clamorômetro ou um segunrançômetro.
A
polícia diz que foi para resguardar a segurança do ex-presidente. Ah, bom.
Estado de exceção é sempre feito para resguardar a segurança. O establishment
juspunitivo (MP, PJ e PF) suspendeu mais uma vez a lei. Pois é. Soberano é quem
decide sobre o estado de exceção. E o estado de exceção pode ser definido,
segundo Agamben, pela máxima latina necessitas legem non habet (necessidade não
tem lei).
Espero
que tudo isso sirva de lição à comunidade jurídica. Quando há mais de 20 anos
eu alertava para o fato de que o livre convencimento e a livre apreciação eram
uma carta em branco para o arbítrio, muitos processualistas me recriminavam,
dizendo: a livre apreciação é motivada. E eu respondia: isso é um argumento
retórico. Se tenho livre apreciação, depois busco uma motivação. E mais: desde
quando motivação é igual a fundamentação?
Hoje posso dizer: eu avisei.
Espero
que os processualistas não vacilem quando discutirem o novo CPP. Simples assim!
Post
Scriptum: Consta que na decisão que determinou a oitiva de Lula e outros, o
juiz Sergio Moro ordenou que primeiro houvesse um convite para, só depois, em
caso de recusa, fazer a coerção. Sendo isso verdadeiro, podemos concluir que a
polícia cometeu abuso de autoridade. De todo modo, a ressalva de “fazer o
convite” não tem o condão de superar a flagrante
ilegalidade/inconstitucionalidade da condução coercitiva.
http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/streck-conducao-coercitiva-lula-foi-ilegal-inconstitucional
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