No
fim dos anos 1970, Maria Lidia Martuscelli, a Lidoka, ganhou fama como
integrante das Frenéticas, grupo de cantoras-garçonetes formado em uma discoteca
no Rio de Janeiro. Como nos versos de seu maior sucesso, Dancing Days, a
cantora tem sentido, sofrido, dançado sem querer dançar nos últimos anos.
Em
uma batalha contra o câncer desde 2006, Lidoka enfrentou uma cirurgia para a
retirada de um melanoma, um tipo de neoplasia de pele, e foi submetida a
quimioterapia para tratar um tumor no intestino. Em 2015, descobriu metástases
no cérebro, glúteo e fígado. Seu oncologista receitou o remédio experimental
Yervoy. O tratamento, no valor de 320 mil reais, provoca diversos efeitos
colaterais: enjoo, diarreias e quedas hormonais capazes de levar à hepatite e a
problemas na tireoide. “Não vou botar essa bomba dentro de mim”, disse Lidoka
ao seu médico.
Nos
últimos meses, a cantora tem buscado tratamentos paliativos. Além de mudanças
nos hábitos alimentares, passou a utilizar uma substância polêmica: a
fosfoetanolamina. Sintetizada por um grupo de pesquisadores do Instituto de
Química da USP em São Carlos, liderado pelo cientista Gilberto Chierice, o
composto químico, originalmente produzido pelo próprio corpo humano, tornou-se
a esperança de milhares de pacientes de câncer em estágio avançado no País.
Após
obter 60 pílulas, fornecidas pela USP por meio de liminar, Lidoka afirma se
sentir bem melhor e está esperançosa com o sucesso do tratamento. “Comecei com
três cápsulas, agora tomo apenas uma por dia para não acabar.”
Alvo
de desconfiança da comunidade médica, a fosfoetanolamina deve deixar o terreno
das incertezas neste ano. O composto será alvo de dois estudos clínicos com
seres humanos. Até o momento, o composto havia sido submetido apenas a
pesquisas com animais e células cancerígenas. Em 2007, o cancerologista Renato
Meneguelo, integrante da equipe de Chierice, apresentou um estudo com
resultados positivos para a regressão de melanoma em cobaias submetidas ao
composto.
Embora
a fosfoetanolamina tenha demonstrado potencial contra o câncer, a falta de
critério na sua distribuição contraria qualquer recomendação médica. Fornecida
pelos pesquisadores da USP de São Carlos informalmente, a substância teve sua
produção proibida pela universidade em 2014. Pacientes como Lidoka recorreram
então aos tribunais para obter o composto.
Em
2015, o TJ de São Paulo pediu a suspensão da entrega das cápsulas, mas
reconsiderou a decisão após Edson Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal,
conceder uma liminar a um paciente de câncer em estado terminal. Atualmente, a
USP tenta atender à demanda de 13 mil processos relacionados à
fosfoetanolamina, apesar de o Instituto de Química de São Carlos ser capaz de
produzir apenas 2,4 mil cápsulas por semana.
Diante
do crescente interesse de pacientes, o Ministério da Ciência e Tecnologia e a
Secretaria de Saúde de São Paulo passaram a coordenar pesquisas distintas sobre
a fosfoetanolamina. Por ora, cada frente realizará seus estudos de forma
independente. Enquanto a pesquisa do governo paulista conta com a supervisão de
Chierice na síntese da substância, o ministério obteve amostras da
fosfoetanolamina com a USP no ano passado.
Segundo
Celso Pansera, ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, resultados
preliminares indicam que a substância não é prejudicial aos pacientes, embora
não se saiba sua real eficácia. “Caso seja comprovado que ela não é tóxica,
nosso objetivo é liberá-la para uso compassivo, medida adotada para
medicamentos inovadores ainda não avaliados integralmente.” Como não há
interesse do grupo de Chierice em obter dividendos com a patente, a eventual
produção em série da fosfoetanolamina não deve sofrer entraves, avalia o
ministro.
Para
Paulo Hoff, do Instituto do Câncer de São Paulo, o estudo realizado em parceria
com a Secretaria de Saúde de São Paulo será complementar ao do governo federal.
Enquanto a pesquisa coordenada pelo ministério tem o potencial de garantir o
registro da fosfoetanolamina na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o
objetivo do estudo paulista é analisar os efeitos do composto. “Ficarei muito
feliz se os resultados forem positivos.”
Chierice
acompanhará a síntese da substância no laboratório PDT Pharma, em Cravinhos,
interior de São Paulo. Após a produção, a substância será encapsulada pela
Fundação para o Remédio Popular, laboratório farmacêutico oficial do estado.
Por outro lado, um relatório preliminar do Ministério da Saúde afirma que o
químico não quis participar do estudo federal por conta da presença de
entidades da indústria farmacêutica na pesquisa. O motivo soa contraditório,
pois o laboratório PDT Pharma também é privado.
Meneguelo
diz não ter sido procurado por Chierice ou qualquer esfera de governo para
participar dos estudos. Biomédico do Instituto Butantan e responsável por
pesquisas com a substância, Durvanei Maria foi convidado pelo Ministério da
Saúde para acompanhar a pesquisa federal. O biomédico também comprovou o
potencial da fosfoetanolamina para estimular a morte programada de células
cancerígenas.
Embora
os estudos sejam realizados em frentes distintas, os dois grupos estimam que a
avaliação de possíveis efeitos colaterais da substância será concretizada ainda
em 2016. Lidoka aguarda ansiosamente para ter acesso livre ao composto. “Só me
resta acreditar no tratamento e confiar no meu lado emocional e espiritual.” Se
não restarem dúvidas sobre a ausência de riscos, antecipar a distribuição da
fosfoetanolamina antes da conclusão dos testes terá ao menos um efeito
benéfico: muitas vezes a fé na cura é a maior aliada de um paciente.
Por
Miguel Martins
*Reportagem
publicada originalmente na edição 889 de CartaCapital, com o título "A
esperança no rigor da ciência"
http://www.cartacapital.com.br/revista/889/a-esperanca-no-rigor-da-ciencia?utm_content=buffera0a8b&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer
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