terça-feira, 13 de janeiro de 2009

ABSURDOS DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO

Este artigo já havia sido postado, porém em virtude de sua publicação no site http://www.direitonet.com.br/ no dia 13 de Janeiro de 2.009, estou colocando-o novamente à disposição dos leitores.
Mostra uma situação absurda e desproporcional que pode ocorrer em virtude da aplicação do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03).

O fato

Jorge encontrava-se em sua casa situada na periferia da cidade durante a tarde de um dia qualquer, momento em que escutou um barulho estranho vindo do porão.

Silenciosamente esgueirou-se até o local de onde vinham os ruídos, quando percebeu que havia alguém tentando furtar algumas ferramentas suas que ali se encontravam. Reconheceu a pessoa como sendo um garoto de 19 anos que vivia nas redondezas, muito conhecido por ser violento.

Tendo quase 60 anos e sentindo que não poderia fazer frente ao rapaz, deu de mão em um revolver velho que existia na casa há muitos anos e que havia pertencido ao seu pai. Detonou um tiro para cima, conduta que acabou por espantar o ladrão, mas que também atraiu uma viatura policial que milagrosamente passava pelo local.

Inquirido sobre o acontecimento, Jorge relatou os fatos exatamente como haviam ocorrido.

Naturalmente, os policiais se obrigaram a fazer o Boletim de Ocorrência, fato que, ao contrário do que imaginava Jorge, acabou por prejudicá-lo.

Como ele havia feito um disparo nas adjacências de um lugar habitado, foi indiciado pelo art. 15 do Estatuto do Desarmamento, cuja pena abstratamente cominada é de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Ainda, como a arma que possuía no interior de sua residência, até pelo fato de ser um objeto transmitido de pai para filho, estava em desacordo com as determinações legais ou regulamentares, incorreu no crime de Posse irregular de arma de fogo de uso permitido do mesmo diploma legal e cuja pena prevista é de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Como o crime de Disparo de arma de fogo, pelo referido estatuto é crime inafiançável, o Delegado de Polícia não teve outro remédio a não ser lavrar um auto de flagrante e determinar o recolhimento de Jorge à prisão até que houvesse manifestação do Juiz a respeito de eventual liberdade provisória, coisas que em comarcas de médio e grande porte pode demorar até três dias, tempo durante o qual ele teve que esperar preso no meio de outros marginais perigosos.

No dia seguinte, os Policiais-Militares, seguindo as indicações de Jorge, acabaram prendendo o rapaz que havia tentado praticar o delito. Evidentemente, como se tratava de crime de furto, cuja pena mínima é de reclusão de um ano, passível portanto do benefício da suspensão do processo previsto no art. 89 da Lei 9.099/95, apenas foi feito o Boletim de Ocorrência e o ladrão foi liberado para responder em liberdade. Enquanto isto, Jorge continuava preso à espera da decisão do juiz, pois nesta altura o advogado por ele contratado já havia protocolado um pedido de Liberdade Provisória.

Consequências

No dia seguinte, finalmente Jorge teve sua Liberdade Provisória concedida e ele foi posto em liberdade. Porém, como havia sido indiciado por duas infrações penais, ele teve que responder ao processo, até porque se trata de concurso de crimes no qual uma das infrações (disparo de arma de fogo), não permite a incidência dos benefícios da Lei 9.099/95.

Como os crimes a ele atribuídos durante o processo tiveram a materialidade e autoria sobejadamente comprovada, até porque foi o próprio Jorge quem inocentemente confessou os atos por ele praticados no momento de seu primeiro contato com os policiais, ele acabou sendo condenado por ambos, felizmente a uma pena que, diante de sua primariedade e antecedentes, lhe possibilitaram a substituição da pena privativa de liberdade por penas alternativas.

Já o rapaz que havia tentado lhe furtar, citado a comparecer à Vara Criminal, como ainda era primário apesar de ser conhecido por sua periculosidade, acabou recebendo do representante do Ministério Público uma proposta de Suspensão do Processo por dois anos, tempo durante o qual ele deveria cumprir algumas condições como o de não se ausentar da comarca sem autorização do juiz e de comparecer pessoal e obrigatoriamente a juízo mensalmente para informar e justificar suas atividades. Naturalmente, ele agarrou com as duas mãos este benefício e voltou para casa sem maiores delongas. Assim sendo, se ao final destes dois anos ele não vier a ser processado por outro crime ou contravenção, ou não descumprir as condições impostas, o Juiz deverá declarar extinta sua punibilidade, ficando ele com seu passado totalmente sem mácula.

Jorge, ao contrário do ladrão, ficou com seu nome constando no rol dos culpados, condenado por duas infrações penais, prejudicado portanto, para qualquer ato em que necessite comprovar seus antecedentes criminais.

Conclusão

Os fatos aqui relatados, embora fictícios, são passíveis de ocorrer e servem para demonstrar a falta de harmonia que existe em nossas leis penais, deixando claro que os nossos legisladores legislam totalmente sem sistematização, sem que haja uma hierarquia na valoração dos bens jurídicos que pretendem proteger.

Note-se que aquele que tentou proteger seu patrimônio em um momento em que ele não poderia se socorrer do aparato estatal, acabou sofrendo as agruras de um processo e de uma condenação, enquanto que aquele que tentou adentrar ao seu patrimônio, bem jurídico amplamente protegido pelo Código Penal, acabou se isentando, e, ao menos formalmente, sem qualquer mancha em seu passado.

Eu quero aqui manifestar minha inconformidade com o nosso Poder Legislativo que, sob a “inocente” justificativa de que pretende diminuir a violência, acabou colocando em vigência o famigerado Estatuto do Desarmamento que na verdade, irá prejudicar apenas naquelas pessoas que, em uma época de grande violência como a que vivemos, usam uma arma para proteger sua família e seu patrimônio, já que os verdadeiros marginais continuarão a utilizar armas de procedência duvidosa e estarão pouco se importando com uma imputação a mais.

Veja-se que teoricamente, o Estado se arvora a ser o detentor do “jus puniendi”, proibindo seus subordinados de fazerem justiça com as próprias mãos. Monopoliza a violência e, em troca, nos promete segurança através de seus aparatos policiais. No entanto, nos dá o direito, em momentos de urgência em que ele não nos pode socorrer, de respondermos a uma agressão injusta, atual ou iminente, com imediatidade e usando moderadamente dos meios necessários e assim rechaçarmos a agressão a direito nosso ou de terceiro.

Ora, conforme podemos verificar diariamente em noticiários veiculados nos meios de comunicação, todos os criminosos agem com armas de grosso calibre (fuzis AR 15, granadas, etc). Diante de tanto potencial de lesividade, como poderá o cidadão desarmado obter meios necessários para reagir a uma agressão de que esteja sendo vítima? Deverá ele reagir a uma agressão levada a cabo com arma de fogo, utilizando-se de pedras, pedaços de paus, de estilingues ou a socos? De que adianta o estado nos conceder o direito de legítima defesa, se retira de nossas mãos os meios necessários para que possamos reagir às agressões praticadas com instrumentos dotados de uma capacidade lesiva bem superior ao que somos permitidos ter à nossa disposição?

A Constituição Federal em seu artigo 5º, caput, garante ao cidadão, dentre outros que elenca, o direito à vida e também à segurança. De igual forma, o artigo 6º, prevê entre os direitos sociais, o que se relaciona à segurança. Por fim, dispõe a Carta Magna que a segurança é um dever do Estado (art. 144, caput).

Tais garantias, teoricamente, nos emocionam, porém na prática, sabemos que o Estado não consegue cumprir à contento o seu dever constitucional de dar à população o mínimo de segurança pública para protege-la da investida dos criminosos cada vez mais bem armados e organizados. É justo que nos impeça de adquirirmos armas que, muitas vezes poderão salvar nossas vidas e preservar a integridade de nossas famílias? Se armado já está ruim, pior ficará se estivermos desarmados, completamente nas mãos dos criminosos.

Assim, diante das circunstâncias, a pergunta cabível é: será que poderia o Estado exigir das pessoas uma conduta diferente daquela praticada por alguns cidadãos, que diante das dificuldades de se adquirir uma arma devidamente registrada, adquirirem-na clandestinamente para se defenderem da violência que cada vez mais os asfixia no âmbito da comunidade em que vivem?

De acordo com a Doutrina, o direito penal somente pode exigir do indivíduo o que lhe seja faticamente possível (Fernando Galvão, Estrutura Jurídica do Crime, pág. 425). Aos julgadores, na tarefa concreta de interpretar e aplicar as normas, cabe a missão de compatibilizar ou preencher as deficiências e omissões legislativas, dando a cada um o que é seu, servindo o princípio da inexigibilidade para a integração do ordenamento jurídico, em uma “salutar válvula de segurança contra as injustiças a que pode conduzir um estreito positivismo legal” (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. II, pág; 454), sendo também o trabalho com exculpantes não previstas em lei uma necessidade inafastável, pois é praticamente impossível determinar;se uma medida-padrão utilizável para aferir a exigibilidade em todos os casos.

Um acórdão entendeu não caracterizado o porte ilegal de arma por residir o acusado em local infestado de marginais e malfeitores (RT 601/329). Diante das circunstâncias, entenderam os julgadores não ser possível exigir que o réu andasse desarmado, aplicando assim, de modo autônomo, o princípio da inexigibilidade de outra conduta.

Talvez seja este o caminho a ser tomado na defesa de réus aos quais forem imputados os crimes previstos no referido diploma legal, justamente deixando transparente que eles, em virtude de fatores externos não conseguem agir de acordo com as normas, tendo excluídas sua culpabilidades em virtude do princípio da inexigibilidade de conduta diversa diante das circunstâncias concretas.
Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
Artigo publicado no site http://www.direitonet.com.br/
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