Figura
icônica da literatura e da militância comunista brasileira, Patrícia Galvão, a
Pagu, é a homenageada de 2023 da Feira Literária Internacional de Paraty
(Flip), deixando um legado literal e literariamente revolucionário — conforme
se pode ver pelos seus escritos jornalísticos.
É
fato que na esquerda brasileira Pagu se tornou uma personagem. Fantasiada por
sua beleza e valentia em proporções quase iguais, Patrícia Galvão tornou-se,
com o passar das décadas, uma figura quase mítica. No rastro do anticomunismo
tipicamente brasileiro — ou do Brasil tipicamente anticomunista? — Pagu passou
a ser vista como um ícone do feminismo, como se a história do feminismo e do
comunismo não estivessem intimamente imbricadas. Quando o feminismo no Brasil e
no mundo acabou por afastar-se do marxismo, Pagu, assim como Frida Kahlo (para
ficar em um exemplo semelhante latino-americano), tornou-se uma imagem
descolada das ideias que defendia. Uma imagem de um feminismo combativo, porém
vendável, ou pelo menos simpático como objeto de consumo. Quem sabe quem foi
Pagu, e que ideias defendia?
Do
outro lado, uma reivindicação também vazia de militantes socialistas e
comunistas que, clamando pelo nome e por sua própria fantasia de quem foi Pagu,
acabam se esquecendo de ler sua obra. Pior, reivindicam seu legado enquanto
defendem posições incompatíveis com seu espírito insubmisso. Foi esse espírito
insubmisso que fez de Pagu — como fez e Kollontaï, e de tantas de nós, mulheres
militantes comunistas — figura controversa e persona non-grata em diversos
espaços à sua época, inclusive entre os comunistas do partidão que ela precisou
abandonar. Mas quem sabe, de fato, quem foi Pagu e que ideias defendia?
A
publicação das obras de Pagu tem sido também envolvida quase sempre por
disputas e tensões entre os desejos de um público que reivindica a importância
pública e democrática de suas contribuições, de um lado, e um olhar privado da
família, por outro. Afinal, a quem pertence Pagu e seu legado?
A
realização de uma FLIP homenageando a autora não foi grande surpresa aos
olhares mais atentos ao mercado editorial. Há pelo menos três ou quatro anos a
editora de maior peso e investimento da feira passou a adquirir todos os
direitos de publicação de sua obra que foram possíveis, inclusive bancando o
prejuízo dos detentores dos direitos — herdeiros de Pagu — em contratos
rompidos antes do tempo. Mas quem são, de fato, os herdeiros de Pagu? Qual a
sua herança?
Pagu
sempre foi indomável. Impossível colocá-la em uma jaula, seja qualquer uma
dessas. Pagu sempre falou por si mesma, e a publicação de sua obra jornalística
é uma das formas possíveis de, entre contendas, honrar esse espírito de
desobediência. Pagu inconformada, sempre; Pagu incendiária; Pagu que não cabe
em manuais ou formatos prontos. Suas publicações em jornais pertencem à mulher
e ao homem do povo.
Pagu
lançava garrafas ao mar do futuro, e por isso suas publicações jornalísticas
pertencem também às pessoas não-binárias do povo, às travestis, às pessoas
trans, e a todes que vivem dissidências insurgente contra o sistema de gênero
machista que ela fez questão de combater.
Em
“Parque Industrial”, Pagu escreveu de forma literária o que na teoria feminista
passamos a compreender bem melhor apenas nas últimas décadas do século XX: não
existe “a mulher”, destacada de sua condição de classe, raça; mas existem opressões
machistas específicas para cada uma das variações possíveis de mulheridade e
feminilidade. Mais do que isso, a autora propunha que uma obra sobre as
mulheres operárias não fosse jamais uma obra sobre, por e para mulheres, mas
uma obra de interesse geral da classe trabalhadora e da luta socialista. É
assim que a encontramos seus escritos incendiários nas páginas de jornais, nas
folhas de “Na vanguarda socialista: os escritos mais incendiários de Patrícia
Galvão”: uma mulher que se recusa, sobretudo, a ser limitada à sua mulheridade
— e toma esse ser mulher como potência. Pagu dialoga com a política, a
literatura e a crítica. Joga areia nas rusgas partidárias, brada feroz contra a
ditadura de Vargas que hoje, infelizmente, vemos ser defendida por quem se diz
ou se disse comunista, e Pagu se revira no túmulo (ou onde quer que esteja;
quem sabe, a esta altura, como Brás Cubas, nos estômagos de vermes e larvas e
adubo!). Os textos jornalísticos de Pagu são, ao fim e ao cabo, os seus textos
hoje mais livres. Escritos para o povo, ao povo retornam e podem novamente
pertencer.
Viva
Pagu! Pagu viva!
Viva
Pagu do povo, onde estará sempre viva.
Sobre os autores
MARÍLIA MOSCHKOVICH
faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil. É doutora em educação e ciências sociais pela Unicamp, pesquisadora colaboradora no GEMID (Gênero, Mídia e Desigualdades na USP) e no Núcleo de Gênero, Feminismo e Psicanálise (Instituto Gerar de Psicanálise).
https://jacobin.com.br/2023/11/incendiaria/
MARÍLIA MOSCHKOVICH
faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil. É doutora em educação e ciências sociais pela Unicamp, pesquisadora colaboradora no GEMID (Gênero, Mídia e Desigualdades na USP) e no Núcleo de Gênero, Feminismo e Psicanálise (Instituto Gerar de Psicanálise).
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