Em
6 de fevereiro deste ano, o jornal O Globo publicou reportagem relatando a
história de Gervásio Borges, de 63 anos, portador de esclerose lateral
amiotrófica (ELA). Ele decidiu se valer de uma diretiva antecipada de vontade
(especificamente, de um testamento vital) com a finalidade de registrar que,
alcançado o estágio final de sua enfermidade (progressiva, incurável e
debilitante), quando ele não puder mais expressar sua vontade, gostaria apenas
de receber a sedação para as dores e ser mandado para sua casa. Ele recusa ser
colocado em ventilação mecânica ou ser alimentado via sonda; não pretende ter
sua vida prolongada artificialmente.
De
forma breve, pode-se conceituar as diretivas antecipadas de vontade como um
documento por meio do qual os indivíduos dispõem antecipadamente sua vontade em
relação aos tratamentos, procedimentos e cuidados aos quais desejam ou não se
submeter caso chegue o momento no qual não possam se expressar de forma
autônoma, podendo, ainda, designar uma pessoa como responsável pela tomada
dessas decisões [1]. Trata-se de um gênero do qual são as principais espécies o
testamento vital (living will) e a procuração para cuidados de saúde (durable
power of attorney for health care). Pela primeira, as decisões são tomadas
diretamente pelo paciente de forma prévia, mediante a especificação das
condições de sua aplicação e os tratamentos aos quais deseja ou não se
submeter. Mediante a utilização da segunda, atribui-se a terceiro a função de
decisor, em substituição ao paciente.
Alguma
confusão tem sido feita com a terminologia. Não raro o termo "diretiva
antecipada" é empregue como sinônimo de "testamento vital", e
vice-versa, o que é incorreto [2], como visto.
As
advance directives surgiram nos Estados Unidos, destacando-se o trabalho de
Luis Kutner, em 1969 (com a proposta do living will) [3], na Califórnia, o
estado no qual, em 1976, aprovou-se a primeira lei reconhecendo a validade do
documento (California's Natural Death Act). O debate foi impulsionado pela
decisão da Suprema Corte de Nova Jersey no caso de Karen Ann Quinlan.
Igualmente tomou os holofotes e movimentou a discussão sobre as diretivas
antecipadas a decisão da Suprema Corte Americana sobre Nancy Cruzan, anterior,
porém no mesmo ano em que o Congresso dos Estados Unidos aprovou o Patient
Self-Determination Act (1990) [4], lei que reconheceu as diretivas antecipadas
com efeito vinculante em todo o território norte-americano.
Além
dos Estados Unidos, contam com leis sobre as diretivas antecipadas: Finlândia,
Hungria, Holanda, Bélgica, França, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Espanha,
Itália, Porto Rico, Uruguai, Argentina, Colômbia, Nova Zelândia, Austrália. E
qual a situação legislativa das diretivas antecipadas no Brasil?
No
Brasil não há lei específica sobre o instituto, cuja validade tem sido
defendida com base na dignidade da pessoa humana (artigo 1, III, CF), na
liberdade e na autodeterminação dela decorrentes (artigo 5, II, da CF), na
privacidade (artigo 5º, X, da CF) e na impossibilidade de submissão do paciente
a tratamento sem seu consentimento (artigo 15, do CC). O mais próximo de uma
regulamentação efetiva trata-se da Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal
de Medicina, e do reconhecimento da juridicidade do documento por meio de
enunciados interpretativos do Conselho da Justiça Federal (V Jornada de Direito
Civil — enunciado 527) e Conselho Nacional de Justiça (I Jornada de Direito da
Saúde — enunciado 37). Há, contudo, propostas em andamento no Congresso
Nacional.
Na
Câmara dos Deputados, tem-se o PL nº 5559/2016 (regulamenta os direitos do
paciente) e o PL nº 352/2019 (dispõe sobre consentimento informado e instruções
prévias de vontade sobre tratamento de enfermidade em fase terminal de vida). A
seu turno, no Senado Federal se encontram o PLS nº 149/2018, diretamente
relacionado às diretivas antecipadas de vontade, e o PLS nº 493/2020, o qual
pretende instituir o estatuto do paciente, dedicando um capítulo às diretivas.
De
todas as propostas, será analisado o PLS nº 149/2018 por tratar especificamente
do instituto. Uma emenda substitutiva (com voto pela aprovação do projeto) foi
apresentada pela senadora Lídice da Mata na Comissão de Assuntos Sociais, onde
o PLS aguarda a realização de audiência pública, requerida pelo senador Lasier
Martins (autor do projeto de lei) e aprovada em 22/03/2022. A decisão da
comissão será terminativa em relação à matéria.
Para
a análise da iniciativa legislativa elegem-se quatro critérios: 1) se houve
distinção entre diretivas antecipadas de vontade e as principais modalidades;
2) as situações a que se destinam; 3) os requisitos formais exigidos; 4) o
conteúdo admitido.
Quanto
ao critério 1, há reconhecimento expresso da divisão em duas modalidades,
testamento vital e procuração para cuidados de saúde (artigo 2º, §1º, I e II),
com o que acompanha a tendência internacional.
Em
relação ao critério 2, já no início (artigo 1º, I, II e III) destaca que as
diretivas se destinam a casos de doença terminal, doenças crônicas e/ou
neurodegenerativas em fase avançada ou estado vegetativo persistente [5].
Por
certo, quando Luis Kutner propôs a utilização do living will pensou a partir de
situações de fim de vida (afinal, estava analisando conjunturas relacionadas à
eutanásia). Entretanto, desde então, expandiu-se significativamente a
abrangência das diretivas antecipadas de vontade. Já se escreve sobre diretivas
antecipadas psiquiátricas, diretivas antecipadas para demência, planos de
parto, ordens de não reanimação [6], todos veículos de manifestação da vontade
do paciente com eficácia prospectiva para situações de futura incapacidade e
que não envolvem, necessariamente, fim de vida.
No
cenário internacional, admitem as diretivas antecipadas genericamente para
situações em que o paciente não possa expressar sua vontade, sem condicionar
sua eficácia a situações de fim de vida, por exemplo, Espanha [7], Inglaterra
[8], Portugal [9] e Alemanha [10]. Assim, afirma-se que não acompanha o avanço
doutrinário a forma como a regulamentação brasileira foi proposta, limitando
sobremaneira o espectro de abrangência das diretivas antecipadas.
Em
relação aos requisitos formais (3), exige-se indivíduo civilmente capaz (artigo
1º, caput), dispensada a prova médica acerca do discernimento (artigo 4º, §1º).
Porém, veda-se a confecção por pessoas portadoras de doenças psiquiátricas ou
demência, mesmo que em fase inicial (artigo 1º, §2º). O documento pode ostentar
a forma pública ou privada (ocasião em que deve contar com duas testemunhas —
artigo 4º, caput). Menores entre 16 e 18 anos podem confeccionar a diretiva
desde que recebam autorização judicial (artigo 1º, §1º). As condições nas quais
as diretivas antecipadas são eficazes (o estágio terminal, a presença de doença
crônica irreversível ou o estado vegetativo permanente) devem ser atestadas por
dois médicos (artigo 1º).
Se
a inclinação para a presunção de discernimento da pessoa juridicamente capaz
merece ser enaltecida por evitar o questionamento a priori daquele que toma uma
decisão que, aos olhos de terceiros, pareceria contrária aos seus melhores
interesses, em valorização da condição de indivíduo autônomo e racional, a
proibição de que pessoas acometidas por enfermidades de natureza psiquiátrica
ou demência se valham de uma diretiva antecipada afigura-se discriminação
injustificada sob a perspectiva da igualdade constitucional.
Como
assinalado, já se tem pensado em diretivas antecipadas destinadas
especificamente a tratamentos de natureza psiquiátrica e relacionadas à
demência. Doenças psiquiátricas podem alternar intervalos de descompensação e
de controle. Caso não tenha sido formalmente declarado incapaz, o indivíduo,
durante um momento de agudização da doença, pode adotar atitudes que sejam
prejudiciais a si mesmo ou terceiros e que ele, mediante uma diretiva
antecipada psiquiátrica, visa a evitar ao concordar antecipadamente com a
internação, por exemplo. A demência, a seu turno, não compromete a capacidade
cognitiva instantaneamente. Após o diagnóstico da doença de Alzheimer (uma das
causas mais comuns de demência), a depender da fase em que a enfermidade foi
descoberta, o paciente ainda conta com a cognição suficiente e, portanto, pode
tomar decisões acerca da própria vida. Não se verificam razões para impedir que
pessoas diagnosticadas na fase inicial da doença estejam impedidas de exercer
sua autonomia se ainda ostentarem as condições de discernimento necessárias.
Se
há preocupação em relação ao grau de compreensão das consequências das decisões
tomadas por pessoas diagnosticadas com enfermidades psiquiátricas ou em estágio
inicial de demência, ao invés de despojá-las totalmente de sua autonomia para o
exercício de escolhas relativas à própria saúde, razoável seria flexibilizar a
presunção de discernimento do artigo 4º, §1º, para permitir que, mediante a
prévia avaliação médica de sua capacidade de tomar decisões, pudessem exercer a
autonomia prospectiva em relação aos cuidados de saúde.
Quanto
ao conteúdo das diretivas (4), a previsão do projeto de lei afasta-se do
posicionamento rejeicionista e admite recusa ou aceitação expressa de
tratamentos. Contudo, de acordo com o artigo 3º, o paciente não pode recusar
cuidados paliativos [11], realizar pedido de morte assistida, fazer constar
disposições de caráter patrimonial ou se manifestar acerca de autocuratela e
tomada de decisão apoiada. Ainda, as determinações não podem contrariar a lex
artis médica (artigo 7, III e artigo 8, II) [12] ou disposições expressas do
ordenamento jurídico (artigo 8, III). É possível, ainda, veicular a vontade
relativa à doação de órgãos post mortem, solicitar alta hospitalar e dispor
acerca de ritos fúnebres (artigo 3, §2º, I, II e III).
A
reportagem que narrou a história de Gervásio destacou também o recorde de
registros de diretivas antecipadas de vontade no Brasil: 780 durante o ano de
2021, o maior número desde 2007. Como se vê, as diretivas antecipadas de
vontade conformam aspecto da realidade brasileira. A despeito da Resolução CFM
nº 1995/2012 tratar do assunto, como advertiu Otávio Luiz Rodrigues Jr., ela
não resolve o problema do fundamento jurídico de base legal para o instituto,
relegando à esfera normativa de uma corporação profissional a regulamentação de
instituto que "interfere no sentido e no alcance da própria vida de um
indivíduo", enquanto diversas outras formas de contratação, em geral,
exclusivamente patrimonial, são regulamentadas pelo ordenamento [13].
Nesse
contexto, a necessidade de segurança jurídica para o exercício de posições
subjetivas existenciais como a aceitação ou recusa de tratamentos médicos para
o momento de futura incapacidade demanda a atenção do legislador e a
positivação do instituto. Alvissareiras são as iniciativas existentes. Há,
todavia, espaço para aperfeiçoamento, ampliando-se o debate para entregar aos
brasileiros uma lei consentânea com as discussões atuais e constitucionalmente
inclusiva. De tal modo, outros tantos brasileiros poderão, como Gervásio,
seguramente crer que serão ouvidos mesmo quando sua voz estiver fisicamente
silenciada.
*
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de
Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma
II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,
UFRJ e UFAM).
[1] PONA, Éverton Willian. Testamento vital e autonomia privada: fundamentos das diretivas antecipadas de vontade. Curitiba: Juruá, 2015, p. 36-36. O tema foi tratado na Coluna Direito Comparado, por Otávio Luiz Rodrigues Jr., em duas ocasiões no ano de 2013, as quais podem ser acessadas aqui e aqui.
[2]
Luciana Dadalto vem sistematicamente advertindo para essa confusão
terminológica e mantém a advertência na mais recente edição de seu livro:
DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6.ed. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 18-19.
[3]
KUTNER, Luis. Due process of euthanasia: the living will, a proposal. Indiana
Law Journal, v. 44, iss. 4, article 2,p. 539-554, 1969.
[4]
Uma análise detalhada dos argumentos empregues nas decisões dos casos de Karen
Ann Quinlan e Nancy Cruzan pode ser encontrada em: AMARAL, Ana Cláudia Corrêa
Zuin Mattos do; PONA, Éverton Willian. O movimento das peças no xadrez com a
morte em tribunais estadunidenses: contribuições para o debate sobre diretivas
antecipadas de vontade. In: DINIZ, Maria Helena (Coord.). Direito em debate.
São Paulo: Almedina, 2020, v. 1, p. 19-62.
[5]
Diferente previsão se observa no PLS 493/2020 que, aparentemente, admite a
eficácia em outras situações. Isso porque separa em capítulos distintos as
diretivas antecipadas de vontade (capítulo III – arts. 16 a 21) e os direitos
do paciente em estágio terminal de vida (capítulo IV – arts. 22 a 25). Ao tempo
em que artigo 16 garante de forma genérica o direito de manifestar
antecipadamente a vontade, o artigo 18 destaca que o paciente com enfermidade
irreversível e progressiva tem direito a ser informado sobre a possibilidade de
confeccionar uma diretiva antecipada e o artigo 19 limita, em casos de estágio
terminal de vida, as possibilidades de recusa. Ainda, o artigo 22 reafirma a
possibilidade de o paciente em estágio terminal aceitar, recusar ou interromper
tratamentos. Ou seja, parece haver distinção entre uma situação mais abrangente
à qual se destinam as diretivas antecipadas (impossibilidade de expressão da
vontade pelo paciente), com a ressalva de especificidades para a situação de
terminalidade da vida.
[6]
DADALTO, Luciana. Testamento vital...cit., p. 20-24.
[7]
Artigo 11, da Ley General de Sanidad (Ley n. 41/2002).
[8]
Mental Capacity Act of 2005.
[9]
Artigo 2º, I, da Lei nº 25/2012.
[10]
BGB, §1901a.
[11]
Como também não permite o artigo 3, da Ley n. 160/2001, de Porto Rico ou o
artigo 1, 4, da Ley n. 18.473/2009, do Uruguai.
[12]
No mesmo sentido o artigo 11, 3, da Ley General de Sanidad da Espanha (Ley n.
41/2002) e artigo 5º. da lei 25/2012, de Portugal.
[13]
RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Diretivas antecipadas de vontade: questões
jurídicas sobre seu conceito, objeto, fundamento e formalização. In: SILVEIRA,
Renato de Mello; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães (Orgs.). Estudos em
homenagem a Ivette Senise Ferreira. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 386.
Éverton
Willian Pona é juiz de Direito no estado de São Paulo, doutorando em Direito
Civil pela FDUSP, mestre em Direito negocial pela UEL-PR e especialista em
Direito Constitucional Contemporâneo pelo IDCC/Unibrasil.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2022-abr-04/direito-civil-atual-testamento-vital-quais-rumos-debate-legislativo-brasileiro
[1] PONA, Éverton Willian. Testamento vital e autonomia privada: fundamentos das diretivas antecipadas de vontade. Curitiba: Juruá, 2015, p. 36-36. O tema foi tratado na Coluna Direito Comparado, por Otávio Luiz Rodrigues Jr., em duas ocasiões no ano de 2013, as quais podem ser acessadas aqui e aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário