Vivemos
numa tragédia mundial provocada por um vírus. Em nosso País, à atitude genocida
do Governo Central alia-se uma irresponsabilidade da população, que assim como
a carência de vacinas fazem com que esta tragédia se expanda até limites que
nem a própria ciência consegue antever.
Pois
bem, bactérias e vírus já causaram estragos maiores à humanidade que as mais
terríveis guerras. O vibrião colérico, que produz o cólera, conhecido desde a
Antiguidade, provocou uma primeira epidemia global em 1817, que se estendeu até
os anos 1840.
Duas
obras primas da literatura mundial se inspiraram na pandemia do cólera, uma
delas dirigida aos jovens e adolescentes. A outra, escrita meio século após,
frente a novo surto, a um público amante da leitura e do pensar.
Ambas
dedicaram-se a certo tipo de mensageiros, aos “Mensageiros da Morte”.
“Mensageiros
da Morte” é um conto de fadas da coletânea “Contos dos Irmãos Grimm”, publicada
em 1840. Nele, a Morte, pequenina, minúscula, vem buscar um Gigante, mas é por
ele dominada e espancada quase até morrer. Um Homem jovem que passa pela
estrada se depara com a pequena Morte estirada ao chão e a socorre. Para
mostrar sua gratidão, a Morte promete-lhe que, apesar de não poder poupá-lo num
futuro, não virá buscá-lo sem aviso prévio, e se compromete enviar-lhe seus
mensageiros: os Mensageiros da Morte.
Muitos
anos mais tarde o homem, num belo dia, é pego de surpresa pela Morte que o
arrebata. Então, ele se revolta e a acusa de ingratidão e de descumprimento do
pactuado. A Morte lhe explica que havia, sim, enviado seus Mensageiros,
acontece que ele, desatento, não os reconhecera.
Por
acaso não se lembrava da diarreia e das doenças que o haviam acometido, dos
sinais de envelhecimento que lhe haviam suprimido a força, e, por que não, de
seus sonhos que haviam se desvanecido no tempo?
Sem
resposta, o Homem torna-se consciente de que a Morte cumprira com sua parte e
permite que ela o leve consigo.
“Morte em Veneza”, uma Novela no estrito
sentido da concepção alemã do Novo (novel), daquilo que é inusitado, foi
escrita por Thomas Mann em 1912.
E
nada seria, no alvorece do século XX, tão inusitado quanto Veneza, a capital da
alegria, do carnaval europeu (tal qual o Rio de Janeiro dos bons tempos) das
bodas elegantes, o epicentro da moda internacional, que justamente nela
ocorressem mortes, milhares de mortes motivadas pela Peste, pelo cólera, que a
alguns anos deixara em paz os países europeus, distribuindo-se pelos países da
então “da periferia do mundo”, principalmente pela América Latina.
Era
o verão europeu. A cidade vivia assolada pela peste. No entanto, os sinais de
uma epidemia de cólera eram ocultos pelas autoridades para não prejudicarem a
economia, no caso, o turismo!
Nos
dias de Covid 19, as autoridades brasileiras reproduzem a situação ficcional
criada pela literatura mais que centenária! Nada aprenderam com o fato de que a
Peste EXIGE o afastamento social. De qualquer forma, as atividades econômicas
serão afetadas. Muito pior, sem o afastamento! E tal sucedeu também na
literatura, na Veneza de Thomas Mann.
O
texto complexo tem um enredo enxuto: um escritor renomado, numa crise de
criatividade aí por volta dos cinquenta anos, viaja de Munique a Veneza, onde
se apaixona platonicamente por um jovem púbere, extremamente belo. Von
Aschenbach, o escritor, que em alemão significa barril de cinzas, tem muito dos
cuidados e dos critérios artísticos do próprio Thomas Mann.
Durante
um passeio em Munique, o personagem- autor para diante de um cemitério onde
avista outro personagem: “um viajante”, cuja face lembra uma caveira, um tipo
muito estranho que deixa nosso Aschenbach abalado. Pois no portal do cemitério
e no estanho viajante, temos a primeira manifestação do “leitmotif” da novela,
do motivo condutor de toda a obra. E em “Morte em Veneza” o “leitmotif” serão
os “Mensageiros da Morte”.
O
abalo da visão é tão grande que tira do escritor qualquer inspiração artística;
decide romper com a rotina e partir em férias para Veneza. Na realidade, é algo
indefinível que faz Aschenbach prosseguir até Veneza.
Veneza
é bela na superfície, brilhante e ensolarada, apolínea; no entanto, está
apodrecida na parte submersa e sua brisa marítima, o siroco, cheira mal, cheira
a mofo! E o siroco é um segundo Mensageiro da Morte, que o escritor,
entretanto, não chega a reconhecer.
A
este se sucedem outros mensageiros, tal como a figura de um velho passageiro
que viaja no mesmo navio que transportou Aschenbach a Veneza. O velho,
enturmado com colegiais, ridiculariza-se para parecer jovem, no caminho de uma
morte que não se assume.
Ao
desembarcar no porto, o gondoleiro que o viajor contrata chega a se negar a
leva-lo onde Aschenbach deseja. O gondoleiro conduz uma gôndola toda negra qual
um esquife, tal qual o barqueiro do Hades, o famoso Caronte mitológico. Em
determinado momento do trajeto, o gondoleiro diz ao escritor que ameaça não
pagar pela viagem: “Mas tu pagarás, pagarás!”
Após
hospedar-se, Aschenbach sai a caminhar pela Piazza de São Marcos. Surgem
músicos loiros para alegrarem o ambiente. Mas eles possuem os dentes cariados,
sua música é decadente, e o seu cheiro de seus corpos prenuncia um leve odor
adocicado que remete aos aspirados em velórios.
Num
bar perto do Grande Canal, servem a Aschenbach suco de romã, romã a fruta
misteriosa que impede Cora, filha de Demeter, de se libertar do reino dos mortos
e nele permanecer três meses ao ano, como Perséfone. Todos os outros, que da
romã experimentam nos reinos subterrâneos, não desfrutam da sorte da filha de
Demeter.
Finalmente,
o escritor se serve a fartar de morangos vermelhos, contaminados pelos vibriões
do cólera. E da Peste ele sucumbirá!
Mann
traceja os artistas como figuras adoentadas, sempre morenas, com olhos
castanhos, em interface com a morte e a vida. Já os loiros de olhos azuis são
personagens imaturas, mas felizes, pois são superficiais, adoram joguinhos e
revistas em quadrinhos!
O
personagem-escritor apolíneo tem também uma visão de pântanos, prenúncio de
ventos quentes, “um deus que vem de longe”, bafejos orientais, mensagens que
dionisíacas. A partir de então, na alma de Auschenbach, lutarão Apolo- a razão,
a verdade, a ordem, os sonhos, e Dionísio (Baco)- a desmedida, a loucura, o
prazer e a orgia.
De
certa forma, perante o Mensageiro da Morte do século XXI, reproduzimos o mesmo
comportamento: dentro de nós ouvimos o chamado apolíneo da responsabilidade
social, do recolhimento, e, por outro lado, a loucura dos prazeres, da folia,
da desmedida dionisíaca.
No
diálogo platônico entre Sócrates e Fédon, a beleza é buscada para ser
contemplada em seu estado mais puro. “Pois a beleza, meu Fédon, é a única forma
do espiritual que podemos receber sensualmente, suportar sensualmente”.
Mann
trás para seu romance, juntamente com cenas mitológicas, esse diálogo
filosófico. Desse modo, a homossexualidade evidenciada em “Morte em Veneza” é
uma questão secundária, embora presente na análise da obra. O amor de
Aschenbach por Tadzio é antes de tudo um tributo à beleza e desenvolve-se no
âmbito da idealização. O jovem é uma personificação do belo, reflexo temporal
da beleza eterna, de um ideal sempre perseguido, de tal modo que se torna
irresistível em sua encarnação.
Em
seu hotel veneziano no Lido, encontra o adolescente de uma família polonesa: o
jovem Tadzio. O tempo quente e úmido afeta a saúde de Aschenbach; ele ainda
tenta partir, deixar Veneza que transcende a morte, mas não consegue. Embora
observe Tadzio obsessivamente, jamais ousa falar com ele, no máximo trocam um
ou outro olhar furtivo e fugaz. Mesmo assim, como possuído pela loucura
dionisíaca, ele perseguirá Tadzio por todos os cantos da cidade.
Tal
qual o Gigante Humano dos Irmãos Grimm, o personagem de Mann se recusa a
reconhecer os Mensageiros da Morte, presentes por todos os lados.
Diferentemente
das autoridades, um agente de viagens britânico confessa o surto de peste ao
escritor, que já causara uma fuga indiscriminada dos turistas e afundara a
economia de Veneza! Mesmo assim Aschenbach permanece, sacrificando sua
dignidade e bem-estar pela experiência imediata da beleza corporificada.
E
com o tempo e com a penetração do “deus máscara” no subconsciente do escritor,
a paixão vai assumindo uma feição mais sensual, erótica, como fica claro na
tentativa de Aschenbach de parecer mais jovem pelo tratamento cosmético, assim
como em seu sonho perturbador ao final do romance. É nele que o escritor
apolíneo incorpora o deus mascarado (Dionísio), do mesmo modo como o velho
passageiro do navio o fizera no princípio da narrativa.
“Com
as batidas dos timbales seu coração retumbava, seu cérebro girava, acometido de
raiva, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à
dança de roda do deus. O enorme símbolo obsceno, de madeira, foi descoberto e
elevado.” Um sonho dionisíaco, orgiástico!
Aschenbach
descobre, ao final, que a família polonesa planeja, como todas, partir. Desce
até a praia, onde está Tadzio com um menino mais velho, Jasiu. Os dois garotos
lutam, e Tadzio é facilmente vencido, pois a beleza sucumbe aos seres inferiores.
Com raiva, o jovem polonês deixa seu companheiro e se dirige à parte do mar
próxima de Aschenbach. Após estar por um momento contemplando o mar, dá meia
volta para olhar seu admirador.
Para
Aschenbach é como se o menino estivesse acenando para ele. Mas Tadzio aponta o
caminho para o mar, para a morte e o renascer e tal qual o deus Hermes, o jovem
dispõe-se a ser o condutor de sua alma.
“Mas
parecia-lhe que o pálido e adorável psicagogo lhe sorria lá longe, lhe acenava;
que, soltando a mão do quadril, apontava para longe e, tomando a dianteira,
lançava-se flutuando na imensidão plena de promessas. E, como tantas outras
vezes, levantou-se para segui-lo”.
Aschenback
tenta, então, se levantar e retribuir, mas tomba em sua cadeira.
Seu
corpo morto é descoberto minutos depois. “E ainda no mesmo dia, um mundo
respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte.”
“Morrer,
isto significa realmente perder de vista o tempo, viajar para além dele,
trocá-lo pela eternidade e pelo presente e, em consequência, pela vida. Pois a
essência da vida é o presente e só num sentido mítico seu mistério aparece nas
formas temporais do passado e do futuro” (“A Montanha Mágica”).
Em
1971, uma genial produção de Luchino Visconte, tendo como protagonista Dick
Boguarte, levou às telas “Morte em Veneza”. O “leitmotif” musical foi a
terceira e a quinta sinfonia de Mahler (cujo filho morrera de cólera em
Veneza). Levar uma novela filosófica ao cinema foi um dos maiores desafios do
mestre italiano.
Que
nós, em tempos dos Mensageiros da Morte do século XXI, devemos procurar rever!
https://www.proust.com.br/post/os-mensageiros-da-morte-na-vida-na-literatura-e-na-mitologia?postId=603d0bf48a8cdd00574e7567
Nenhum comentário:
Postar um comentário