A
obsolescência programada produz milhões de toneladas de lixo eletrônico por ano
e submete usuários às corporações tecnológicas. Em vários lugares, surgem os
“cafés de conserto”, que se insurgem contra o desperdício e a dependência
“Hmm”,
murmura Bruno Mottis, enquanto aperta os olhos atrás dos óculos. “Você derramou
água nele? Ou colocou mais de um quilo de peso em cima? A fiação interna parece
ter fritado ou desconectado de alguma maneira”, explica.
Mottis,
um técnico voluntário, vira de ponta cabeça a balança de cozinha vermelha
(decorada com a frase “keep calm and make jam“, ou “fique calmo e faça geleia”)
e inspeciona sua placa de circuito com um detector de voltagem portátil.
“Pode
ter molhado quando eu a estava limpando”, responde Imene, uma parisiense que
participa de um workshop de conserto em um prédio público no nono
arrondissement da capital francesa.
“Espero
que dê para consertar, para não ter que comprar outra. Se tiver que comprar,
eventualmente haverá outro problema e terei que comprar outra. É um ciclo
vicioso”, reclama.
Paris
é o lar de uma dúzia dessas oficinas ou “cafés de conserto”, iniciativas
mensais gratuitas que permitem aos moradores locais consertar utensílios
domésticos e eletrônicos com a ajuda e o conselho de voluntários entusiasmados.
Inspiradas
na iniciativa lançada pela jornalista Martine Postma em Amsterdã em 2009,
centenas de oficinas semelhantes operam em toda a Europa.
“Somos
uma sociedade de desperdício e consumo excessivo”, explica Emmanuel Vallée,
organizador do Repair Café Paris, que desde o seu lançamento, em maio de 2019,
costuma atrair cerca de 25 pessoas por evento, incluindo algumas que participam
online.
“Jogamos
fora coisas que não necessariamente precisaríamos jogar”, lamenta.
Martine
Postma
Martine
Postma foi a pioneira dos cafés de conserto na Holanda, inspirando iniciativas
semelhantes em toda a Europa
Para
Vallée e técnicos como ele, há muito trabalho a ser feito.
O
mundo produziu cerca de 45 milhões de toneladas de lixo eletrônico em 2016,
quando consumidores e empresas jogaram fora smartphones, computadores e
eletrodomésticos avaliados em US$ 62,5 bilhões.
E
apenas 20% de todo esse equipamento é reciclado de maneira adequada.
Na
Europa, onde o problema é particularmente grave, os pesquisadores estimam que
somente de algo entre 12% e 15% dos telefones celulares são reciclados de forma
apropriada, apesar de cerca de 90% da população possuir um.
E
a previsão é de que o lixo eletrônico, que muitas vezes é enviado ilegalmente
do Ocidente para enormes aterros tóxicos em países como Filipinas, Gana,
Nigéria e China, deve chegar a mais de 52 milhões de toneladas até o fim de
2021 — e dobrar de volume até 2050, se tornando o tipo de lixo doméstico que
mais cresce no mundo.
O
impacto ambiental varia de emissões gigantescas de carbono à contaminação de
fontes de água e de cadeias de abastecimento de alimentos.
Mas,
com os consertos, uma parte significativa desse desperdício poderia ser evitada.
Café
de conserto em Paris
Cafés
de conserto, como este em Paris em 2014, oferecem às pessoas a oportunidade de
aprender como consertar seus próprios dispositivos e eletrodomésticos quebrados
De
acordo com um estudo da Agência Francesa de Meio Ambiente e Gestão de Energia,
apenas 40% das avarias eletrônicas são consertadas na França.
As
pesquisas, no entanto, indicam que quase dois terços dos europeus preferem
consertar seus produtos do que comprar novos.
É
por isso que as autoridades francesas acreditam que, assim como a balança da
cozinha de Imene, o sistema atual não funciona e precisa ser reparado.
Em
um esforço para reduzir essa enorme quantidade de resíduos evitáveis, a
Assembleia Nacional Francesa votou no ano passado para instituir um índice de
classificação de “reparabilidade” para eletrodomésticos como máquinas de lavar,
cortadores de grama, televisores e smartphones.
Ao
fazer isso, o governo francês espera aumentar a taxa de conserto de
dispositivos eletrônicos em 60% em cinco anos.
Medidas
de eficiência energética
A
lei francesa exige o uso de um sistema de classificação de reparabilidade do
produto semelhante ao que já é usado para medir a eficiência energética
As
regras entraram em vigor em janeiro e exigem que os fabricantes coloquem
classificações em seus produtos — algo semelhante ao sistema de classificação
de eficiência energética que já está amplamente implementado.
Elas
são calculadas com base em cinco critérios: facilidade de conserto, preço das
peças de reposição, disponibilidade de peças de reposição, disponibilidade de
documentação para conserto e uma medida final que varia dependendo do tipo de
dispositivo.
Depois
do primeiro ano, uma multa de até 15 mil euros será imposta aos produtores,
distribuidores e vendedores que não cumprirem a medida.
O
projeto de lei também prevê um índice de “durabilidade”, a partir de 2024, que
levará em conta novos critérios como confiabilidade e robustez do produto.
“Queremos
limitar o consumo dos recursos naturais do mundo”, explica Véronique Riotton,
deputada francesa que foi relatora da legislação.
“Todo
mundo está preocupado. O objetivo é melhorar o mercado de consertos, e espero
que esse índice deixe o consumidor mais consciente em relação a esta crise
ecológica”, afirma.
O
esquema de classificação foi apresentado como o primeiro do tipo no mundo,
preparando o terreno para que outros países sigam essa tendência.
A
expectativa é de que o sistema francês dê início a uma corrida entre as
empresas para melhorar a “reparabilidade” dos produtos.
Telefone
sendo jogado no lixo
Na
Europa, apenas algo entre 12% e 15% dos telefones celulares são reciclados de
maneira adequada
Os
ativistas acreditam que as medidas vão permitir que um número maior de pessoas,
assim como partes interessadas, como oficinas de conserto, realizem os
trabalhos, o que pode levar a uma maior aceitação do ato de consertar.
“O
conserto não está no topo da lista de prioridades da indústria [eletrônica]”,
diz Maarten Depypere, engenheiro de políticas de reparos da iFixit Europe,
empresa privada que produz avaliações de reparabilidade de produtos.
“Mas
a França realmente levou os consumidores em consideração com essa lei. É uma
solução muito equilibrada, que acho que vai gerar mais concorrência entre as
empresas. Acredito que todos os países deveriam adotá-la”, afirma.
Os
estudos preliminares sugerem que o aumento dos consertos pode ter um grande
impacto.
Uma
análise do Escritório Europeu de Meio Ambiente (EEB, na sigla em inglês), uma
rede de organizações ambientais na Europa, concluiu que estender a vida útil de
todas as máquinas de lavar, laptops, aspiradores de pó e smartphones na União
Europeia em um ano economizaria quatro milhões de toneladas de dióxido de
carbono anualmente até 2030, o equivalente a tirar dois milhões de carros de
circulação das estradas todos os anos.
No
entanto, os ativistas veem uma falha grave no índice de reparabilidade da
França: o fato de que a avaliação será feita pelos próprios fabricantes, e não
por um órgão independente.
“Obviamente,
há um risco de parcialidade se os fabricantes fizerem sua própria
classificação”, afirma Jean-Pierre Schweitzer, responsável pelas políticas de
produtos e economia circular da EEB.
“Mas
esse é o primeiro selo nacional do gênero. Mostra que a questão do conserto tem
se tornado cada vez mais importante. Não precisamos ser luditas [referência ao
movimento ocorrido na Inglaterra no século 19 que reuniu trabalhadores da
indústria contrários aos avanços tecnológicos em curso], se trata de reinventar
como usamos a tecnologia”, explica.
De
acordo com Schweitzer, vários avanços políticos recentes refletem o apoio ao
que tem sido chamado de “direito de consertar” dos consumidores.
Em
dezembro de 2019, a União Europeia adotou seus primeiros requisitos de design
ecológico para eletrodomésticos, como geladeiras, máquinas de lavar, iluminação
e telas.
Homem
em usina de reciclagem de eletrônicos
Muitos
países não possuem sistemas de reciclagem adequados
Isso
foi seguido pelo Acordo Verde da União Europeia e pelo novo Plano de Ação da
Economia Circular, com o compromisso explícito de explorar o “direito de
consertar”.
Desde
então, a Comissão Europeia lançou processos de consulta que analisaram conjuntos
mais amplos de produtos, como tecidos, móveis e pilhas.
Mais
recentemente, em novembro, o Parlamento Europeu aprovou um relatório a favor do
estabelecimento de regras mais rígidas sobre o “direito de consertar”.
Também
há avanços a nível nacional.
Na
Áustria, o governo reduziu pela metade o IVA (Imposto sobre Valor Agregado)
sobre certos consertos para 10%, e vários estados introduziram um sistema de
vouchers de até 100 euros para financiar os reparos.
Na
Hungria, o governo estendeu o período de garantia de certos eletrodomésticos
para até três anos.
Além
disso, a Austrália divulgou um relatório sobre o “direito de consertar”, e as
conclusões devem ser apresentadas em breve, enquanto alguns estados dos EUA têm
o direito de consertar em vigor há uma década, embora seja focado sobretudo em
veículos.
Esses
avanços também vão exigir mudanças significativas na forma como os fabricantes
de bens de consumo operam atualmente e nos produtos que eles produzem, diz
Chloe Mikolajczak da campanha Right to Repair, uma coalizão de 40 organizações
em 15 países europeus.
Muitos
fones de ouvido sem fio, observa ela, não podem ser desmontados, tampouco
consertados; uma vez que as baterias se esgotam, precisam ser descartadas;
enquanto os smartphones estão cada vez mais complexos com várias câmeras, o que
os torna mais difíceis de consertar.
iPhone
A
Apple é uma das empresas acusadas de reduzir intencionalmente a durabilidade de
seus produtos
As
atualizações de software são parte dessa reparabilidade, acrescenta
Mikolajczak, e os fabricantes precisarão manter os dispositivos mais antigos.
No
entanto, nem sempre é o caso.
A
fabricante de alto-falantes Sonos foi criticada em 2019 por um recurso de
software que tornava os dispositivos mais antigos inutilizáveis.
E
a Apple gerou polêmica ao reduzir intencionalmente a capacidade de computação
dos iPhones mais antigos em uma prática conhecida como “obsolescência
programada”.
A
DigitalEurope, órgão da indústria de tecnologia digital que representa empresas
como Amazon, Apple e Google, se recusou a comentar o assunto quando contatada
pela BBC Future Planet.
Mas
um porta-voz fez referência a um posicionamento oficial da DigitalEurope, que
observa que os seus “membros há muito tempo abriram caminho para o avanço
ambiental” e que “enfatiza a necessidade de garantir requisitos equilibrados”
para o direito de consertar.
O
documento exige que as regras sobre o direito de consertar sejam
“proporcionais, viáveis, rentáveis e respeitem o sigilo comercial” e defende
que “os fabricantes devem continuar a optar por um serviço profissional por
meio de uma rede de parceiros técnicos certificados, que, segundo eles, são
preferíveis a técnicos externos por questões de qualidade, de segurança,
comerciais e ambientais.
“Não
acreditamos que esses argumentos se sustentem”, diz Mikolajczak, no entanto.
“Não
há razão para pensar que consertos de terceiros resultariam em danos. E, se as
empresas concorrentes realmente quisessem olhar dentro dos dispositivos da
concorrência, não precisariam de um técnico terceirizado para fazer isso. Essas
restrições apenas tornam mais difícil e mais caro para os consumidores
consertar os dispositivos”, acrescenta.
Café
de conserto
Nos
cafés de conserto, todos os tipos de aparelhos são consertados, de máquinas de
costura a brinquedos, telefones e computadores
Para
quem vai aos cafés de conserto de Paris, a realidade dos reparos é
completamente diferente.
As
conversas animadas, o cheiro de bolo recém-saído do forno e o barulho das
ferramentas tomam conta da sala, que conta com cerca de uma dúzia de estações
de conserto ocupadas pelos participantes.
“Me
disseram que não poderia ser consertado”, diz Caroline, mostrando o parecer do
fabricante atestando que sua máquina de costura de 20 anos é irreparável.
“Mas
identificamos o problema em questão de minutos. As coisas funcionam melhor
quando resolvemos o problema com nossas próprias mãos.”
https://outraspalavras.net/outrasmidias/contra-o-consumismo-e-desperdico-consertar/?fbclid=IwAR0JiyEafBNhrrhR5EEFC2FXHONYr0hiLXp58et7B2FkB1IJgAqXkhYolDg
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