A
ansiedade para ler “Minha carne: diário de uma prisão” (Boitempo, 2021), de
Preta Ferreira, começou há pouco mais de um ano, quando soube que o livro seria
publicado. Nos mais de 100 dias de cárcere, a escrita, assim como a leitura,
foi companheira, arma e cura de Preta, acusada de de associação criminosa e
extorsão por ser liderança do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). “Eu sei que
não sou nada disso que me acusam, mas, no momento, até provar que sou inocente,
estou na condição de re-educanda e sou mais um número entre as presas
injustamente do país, mais uma presa política”, escreveu Preta no 52° dia de
cárcere.
Nas
223 páginas do livro, Preta Ferreira narra o dia a dia da Penitenciária
Feminina de Sant’Anna e das outras celas por onde passou, conta histórias de
mulheres que conheceu no sistema prisional, compartilha memórias de sua
infância, tece reflexões políticas. Um livro de escrita fluída que não consegui
ler rapidamente. Indignação, raiva, tristeza se materializavam como enjoo e dor
de cabeça que exigiam pausas longas na leitura. O peito apertado por saber que
tantas pretas seguem privadas não apenas de liberdade, mas de dignidade,
humanidade.
“Hoje
me peguei observando a quantidade de mulheres negras na cela especial. Por
incrível que pareça, somos em três; antes da minha chegada, era só uma, a Ana.
Após uma semana da minha chegada, veio Ednalva. Já no pavilhão, a massa das
negras é como se fosse um navio negreiro, eles jogam todas juntas, amontadas, e
ainda tentam fazer com que nos olhem feio ou achem ruim e estranho sermos
separadas, fazendo parecer que somos melhores que elas”, publicou Preta
Ferreira no livro.
Sentença
mencionando filhos que a mulher julgada não tem, constatando que o juiz nem se
dignou a analisar o caso, mas reproduziu o texto-padrão formulado para negras
pobres automaticamente condenadas. Mães chorando nos aniversários dos filhos de
quem nem têm notícias. Filha lamentando a morte da mãe. Cartas violadas,
julgadas, censuradas. Doações que não chegam às presas, confiscadas por
funcionários que se beneficiam delas. Funcionárias essas que, em sua maioria,
passam doze horas por dia na cadeia, com uma folga na semana. Assim como as
encarceradas, também são revistadas, não podem entrar com celular, comem a
comida propositalmente ruim servida às presas. Na escrita em primeira pessoa de
Preta Ferreira conhecemos ainda mais camadas perversas do Brasil.
Importante
perceber como, atrás das grades, Preta Ferreira experimentou a liberdade. Ao
formular esteticamente aquele experiência, e sua própria existência, pela
escrita de si e no trabalho de memória, Preta escapa da sujeição a ela imposta.
Reconstrói sua subjetividade a partir de sua própria narrativa, em seus
próprios termos, em conexão com sua ancestralidade. E ao cuidar de si desse
modo, participa da construção de sujeitos coletivos também libertos dos
processos de sujeição e subalternização. Quando uma amiga a visitou com uma
blusa que estampava “PRETA LIVRE”, depois de chorar de felicidade, Preta
corrigiu o que viu de errado na frase: disse a ela que faltavam dois “S, que
nossa luta sempre será em plural; portanto, de agora em diante, ‘PRETAS LIVRES’, ‘LIBERDADES PRETAS'”.
A
insurgência da escrita de Preta Ferreira abre a possibilidade a ela, e a todas
e todos nós, de escaparmos do biopoder e da necropolítica citada por ela no
livro. Em sua escrevivência, Preta Ferreira incomoda, tira o sono, mostra o
absurdo do cárcere, e convoca à luta por moradia, educação e justiça. Sem
deixar de olhar o céu, admirar o brilho das estrelas, e celebrar a sensação do
vento da noite soprando em sua carne.
Fonte: ECOA, por Bianca
Santana
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