Galeano,
sedutor em e com sua prosa, é tido como o mestre dos relatos curtos. Fundador
da Revista Crisis (“Crise”, em português) e autor de livros como a trilogia
Memória do Fogo, Galeano foi preso e obrigado a abandonar o Uruguai em 1973. Na
sequência, foi para a Argentina e precisou se exilar em 1976, com o começo da
ditadura. Como consequência desse contexto, o livro As Veias Abertas da América
Latina foi proibido em grande parte da região.
A
editora Siglo XXI, que publicou todos os seus livros, anunciou que lançará a
hashtag #Galeano nas redes sociais, para convidar as pessoas a compartilharem
seus textos e leituras. Assim, estarão disponíveis as obras, Bocas do Tempo,
Futebol ao Sol e à Sombra, O livro dos Abraços, Espelhos, os três volumes de
Memória do Fogo, Dias e noites de amor e guerra, O caçador de histórias e Os
filhos dos Dias, entre outras.
Eduardo
da América “Lapobre”
Eduardo
Germán María escolheu assinar com o sobrenome materno, Galeano, para não usar o
paterno e anglo-saxão Hughes — mesmo tendo utilizado o Gius para assinar alguns
desenhos e quadrinhos. Eduardo foi jogador de futebol frustrado (por ser perna
de pau), pedreiro, mensageiro, cartunista, jornalista e, finalmente, escritor,
para “ajudar a resgatar as cores e a luz do arco-íris humano, essa coisa
mutilada por anos, séculos, milênios de racismo, machismo, guerras e mais. Sim,
irmão, somos muito mais do que aquilo que nos contam”
Se,
na casa dos vinte anos, já havia passado pela edição do semanário Marcha e pela
gestão do jornal Época, aos 30 já havia escrito As veias abertas da América
Latina — que apresentou ao prêmio Casa das Américas… mas não ganhou
Cerca
de 40 anos depois, o presidente venezuelano Hugo Chávez presenteou Barack Obama
com uma cópia do livro (na Cúpula das Américas de 2009), com suas análises
socioeconômicas que por vezes tinham sabor de manifesto, e ímpeto de
proclamação. MasObama não se interessa pela história, muito menos pelas
interferências e genocídios executados por seus antecessores — e, obviamente,
não leu a obra.
Caminhante
incansável da América “Lapobre” [brincadeira para substituir o “Latina”], foi
correspondente da Prensa Latina na Venezuela e, para não sentir saudades do
litoral de Montevidéu, se hospedava no decadente Hotel La Alemania, em Macuto,
a cerca de 40 quilômetros de Caracas. Muitos anos depois, para esquecer que
quase morreu de malária nos trópicos (chegou a escrever uma crônica sobre seu
delírio), conseguiu se banhar novamente no Caribe, em frente ao mesmo hotel,
que resistira à Vaguada de 1999 [ou “Tragédia de Vargas”, conjunto de desastres
naturais que atingiram o estado de Vargas entre 14 de dezembro e 16 de dezembro
de 1999, com chuvas torrenciais, inundações e deslizamentos].
Seu
amigo Luis Britto García brinca que cada vez que a polícia, ou os vírus, ou os
infartos atacavam Eduardo, ele saía revigorado. Exílios consecutivos o
separaram da edição da Revista Marcha e do Época (em Montevidéu), e também, da
Crisis, uma das revistas de repercussão continental que a ditadura argentina
encerrou em 1973. No exílio, em Barcelona, as autoridades lhe exigiam ter um
emprego para renovar o visto, mas não o deixaram trabalhar enquanto não tivesse
o visto renovado.
Rico
em exílios, Eduardo driblou diversos gêneros literários para fazer com que a
plenitude de suas mensagens chegasse a todos. Conheceu e conviveu com
guerrilheiros maias, mineiros bolivianos, garimpeiros venezuelanos, ciente de
que dessa fragmentação surgiria a totalidade em suas Memórias do Fogo, um mural
em que as partes se enxergam dentro de um todo, feito de detalhes que se tornam
leis gerais e de análises ágeis feito aforismos.
Eduardo
começou a escrever suas ideias em guardanapos e toalhas de mesa de papel, e,
posteriormente, em minúsculos cadernos, para se transformarem em contos,
romances, tratados sociopolíticos, entrevistas e reportagens, com frases
poderosas.
Britto
se anima a concluir que, ao tratar a história como uma novela emocionante, a
mitologia indígena como notícia, e a denúncia como poesia, Galeano vai se
tornando cada vez mais propenso à antologia, porque tudo nele é antologizável.
“Acho
admirável a capacidade dos povos indígenas das Américas em perpetuar uma
memória que foi queimada, punida, enforcada, desprezada ao longo de cinco
séculos. E toda a humanidade tem que agradecer, porque graças a essa memória
teimosa aprendemos que a terra pode ser sagrada, que fazemos parte da natureza,
que a natureza não acaba em nós. Que existem possibilidades de organizar a vida
coletiva, formas comunitárias que não se baseiam no dinheiro. Que a competição
com os demais não é inevitável e que o próximo pode ser alguém, muito melhor do
que um simples adversário”, escreveu em Memórias de fogo.
As
Veias Abertas destrinchava a barbárie estadunidense no continente, a obsessão
norte-americana em apoiar ditaduras e genocídios para realizar seus negócios.
“Procurava ser um livro de economia política, mas eu não contava com o preparo
necessário”, afirmou.
Inclusive
reconhecia, com humor, que não poderia lê-lo novamente porque desmaiaria: “Para
mim essa prosa da esquerda tradicional é extremamente pesada e minha mente não
tolera isso.” Obviamente, a direita tentou usar esse argumento contra ele, mas
com isso, fez com que muitos que não tinham lido o texto, se interessassem.
Agora,
sua obra Mulheres nos intoxica de beleza e feminismo, com a ajuda de Helena
Villagra, a sonhadora, sua esposa por quatro décadas.
Eduardo
era um grande ouvinte, o cacique Oreja Abierta (Orelha Aberta), como ele
próprio se definia. Sempre falou da e pela juventude, dos e para os indígenas,
contra os narco-Estados e o neoliberalismo, a favor da ecologia e da
legalização das drogas. Ele falava contra o esquecimento e sobre o resgate da
memória para encontrar os caminhos do futuro comum.
Mas
ele também foi um exilado político, e se absteve de fazer disso uma profissão.
Saiu do Uruguai depois de ter sido preso pela ditadura, atravessou o rio da
Prata para morar na Argentina, mas — ameaçado de morte — teve de voltar à
Espanha. Perdão, à Catalunha.
Em
1985 voltou ao seu país, onde foi cofundador do semanário Brecha. Nesse mesmo
ano obteve o Prêmio Stig Dagerman, e ao longo de sua vida recebeu diversos
doutorados Honoris Causa de universidades em Cuba, El Salvador, México e
Argentina; em 2010, o Prêmio Manuel Vázquez Montalbán na categoria de
Jornalismo Esportivo; e em 2013, a Ordem Simón Rodríguez das mãos de Nicolás
Maduro — Chávez não sobreviveu para lhe entregar essa ordem, depois de Galeano
recusar uma condecoração com o nome de Francisco de Miranda, “agente inglês”.
Foi
solidário por excelência, com os povos e as ideias. De seus últimos textos
publicados, lembramos: “Os órfãos da tragédia de Ayotzinapa não estão sós na
busca obstinada por seus entes queridos entre o caos dos lixões queimados e das
valas lotadas de restos humanos. Vozes de solidariedade os acompanham, e sua
presença calorosa em todo o mapa do México e além, inclusive nos campos de
futebol, onde há jogadores que comemoram seus gols desenhando com os dedos, no
ar, a cifra 43, que homenageia os desaparecidos”.
Sempre
do lado dos pobres e dos indignados, seu ativismo social e compromisso com os
mais vulneráveis o levou até Chiapas, para conhecer de perto o Exército
Zapatista de Libertação Nacional, experiência que compartilhou ao longo de
vários anos em inúmeros artigos, por exemplo, em Uma marcha universal (2001).
“Aqueles
que falam do problema indígena terão de começar a reconhecer a solução
indígena. Afinal, a resposta zapatista a cinco séculos de acobertamento, o
desafio dessas máscaras que desmascaram, abre o esplêndido arco-íris que o
México tem dentro de si e devolve as esperanças àqueles condenados à espera
perpétua”.
“Como
já se percebeu, os indígenas são um problema apenas para aqueles que lhes negam
o direito de ser o que são e, portanto, negam a pluralidade nacional e negam o
direito dos mexicanos de serem totalmente mexicanos sem as mutilações impostas
pela tradição racista, que diminui a alma e corta as pernas”.
Em
2008, Galeano recebeu a distinção do Mercosul — o primeiro ilustre cidadão da
sub-região — e fez um discurso inesquecível, no qual se disse um “patriota de
muitas pátrias”. “Só estando juntos poderemos descobrir o que podemos ser,
contra uma tradição que nos treinou para o medo, a resignação e a solidão e que
a cada dia nos ensina a não nos amarmos”, disse.
Conheci
Eduardo quando eu começava minha carreira de jornalista esportivo na Época e
nossa amizade se expandiu entre cafés, almoços e longos jantares em diferentes
cidades (o último, em Montevidéu, com Zé Fernando e Angelito Ruocco como
cozinheiros, com vinho Tannat para nós e cerveja para ele), onde as histórias
de e sobre seus netos foram ganhando espaço. Mas neste 3 de setembro não
poderemos compartilhar comida armênia (e não será por causa da peste).
Foi
referência e fomentador de diversos empreendimentos, entre eles a Telesur,
quando nos ensinou a nos enxergarmos com os próprios olhos e nos reconhecermos
no próprio espelho, e a defendeu e promoveu como um dos maiores sucessos da
Revolução Bolivariana.
Solidário
com os palestinos (“Desde 1948 eles vivem condenados à humilhação perpétua.
Eles não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras,
sua água, sua liberdade, seu tudo. Eles não têm nem o direito de eleger seus
governantes”), os povos indígenas, os haitianos, e os povos subjugados que
lutam pelo seu futuro. Mas também com seus amigos, que conseguiu distribuir
pela América inteirinha e pelo mundo. Os indignados, os batalhadores da América
Lapobre e do mundo perderam um de seus guias, uma de suas poucas referências
intelectuais e políticas das últimas cinco décadas. E um amigo.
“A
identidade não é um objeto de museu, quietinha na vitrine, mas a síntese sempre
surpreendente das nossas contradições quotidianas. Nessa fé, fugitiva, eu acho.
Me parece ser a única fé digna de confiança, pela sua semelhança com o inseto
humano, ferrado porém sagrado, e com a louca aventura de viver no mundo (…)
Afinal de contas, somos aquilo que fazemos para mudar quem somos: dos medos
nasce a coragem; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade
possível; e os delírios, outra razão ”, dizia.
Que
falta ele nos faz hoje, enquanto procuramos por um novo pensamento crítico
latino-americano e pensamos no relançamento de um «outro» Fórum Social Mundial!
Hoje,
Eduardo – Gius, Edu, Dudi, Abu – é um legado de milhões de palavras, escritas
em inúmeros livros, ditas em múltiplas falas, transformadas em texto, som e
imagem, arrebatadas por milhares e milhares de jovens e adultos, homens e mulheres
inconformados ao redor deste planeta, nas entrevistas concedidas, em todas
aquelas frases que circulam na Internet… e que hoje, felizmente, as novas
gerações procuram.
“Este
é um mundo violento e mentiroso, mas não podemos perder a esperança e o entusiasmo
para transformá-lo … a grandeza humana está nas pequenas coisas, que fazemos
rotineiramente, no dia-a-dia que os anônimos fazem sem saber que o fazem”:
nisso nós continuamos.
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