Estereótipo
da mulher negra como mais forte é um dos fatores que podem levar a situações de
violência obstétrica. Especialistas defendem que, para reverter o cenário, são
necessárias medidas educativas voltadas aos profissionais da saúde. Fonte:
Celina, por Raphaela Ramos
Há
duas semanas, Licyane de Almeida Santos, de 27 anos, então com 37 semanas de
gestação, procurou atendimento médico em um posto de saúde localizado na Zona
Norte do Rio de Janeiro. Estava com pressão alta e se sentindo mal, com dores
de dilatação. Por isso, durante a consulta, pediu ao ginecologista obstetra que
desse um atestado ou iniciasse o período de licença-maternidade para que fosse
liberada do trabalho como demonstradora em lojas de cosméticos, no qual precisa
ficar em pé durante horas, além do tempo gasto no transporte. Licyane conta que
o médico, no entanto, se recusou e debochou da situação.
—
Eu cheguei com dor e ele ficou rindo, debochando. Foi muito humilhante. Disse
que eu estava fazendo drama, que a dor era normal e não me examinou. Eu fiquei
nervosa e comecei a chorar. Não podia ficar em casa sem o atestado se não seria
descontada — afirma a gestante, que já teve duas gestações interrompidas e um
filho prematuro por complicações relacionadas à hipertensão. Ela conta não ter
sido a primeira vez em que houve descaso no atendimento pré-natal.
Licyane
seguiu para o trabalho, mas ao passar mal foi encaminhada para um hospital onde
receitaram exames e recomendaram o repouso durante duas semanas. A gestante
relatou a situação em um vídeo, postado no Twitter, que gerou grande
repercussão. Ela recebeu apoio de advogados e uma médica, e foi criado um chá
de bebê virtual para ajudar nos preparativos para o nascimento de sua filha.
Entre os compartilhamentos, alguns internautas alertaram que o caso se enquadra
como racismo obstétrico, um tipo de violência obstétrica que atinge mulheres
negras.
—
A violência obstétrica é um conceito usado para definir as violências sofridas
pelas mulheres na procura por serviços de saúde durante todo o período da
gestação, parto, puerpério e também em casos de aborto. Ela pode ser
psicológica, física ou moral — afirma a epidemiologista Emanuelle Goés,
pesquisadora da Fiocruz Bahia, com trabalho dedicado as desigualdades raciais
no acesso aos serviços de saúde, direitos reprodutivos e racismo,
interseccionalidade e saúde das mulheres.
Essa
forma de violência inclui abusos que podem estar relacionados ao não exercício
da autonomia da mulher e à exploração do seu corpo. A cesárea realizada em
casos em que não há indicação médica, a episiotomia, corte realizado para
ampliar o canal de parto, e a manobra de Kristeller, quando a barriga da mulher
é empurrada para facilitar o nascimento do bebê, também são exemplos de
práticas consideradas como violência obstétrica, assim como a negação do
direito à acompanhante, privacidade, confidencialidade e cuidado de qualidade.
É comum que as mulheres passem por situações de abuso como essas mas não as
reconheçam, por serem condutas, muitas vezes, naturalizadas.
Apesar
de poder atingir a todas, Goés destaca que esse tipo de violência de gênero
afeta mulheres negras de forma particular, pois, nesses casos, tem como base
estereótipos racistas:
—
São as mulheres brancas que estão mais expostas a um tipo de violência
obstétrica como, por exemplo, a cesárea sem indicação médica, que é mais comum
no serviço privado. Mas as violências mais graves, que levam até a morte, são
mais relacionadas às mulheres negras. São situações em que, muitas vezes, era
necessária uma intervenção médica maior para salvar aquela vida e não há,
porque acreditam que as mulheres negras aguentam mais a dor, são boas de parir
— afirma a pesquisadora.
Um
artigo publicado em 2017 nos Cadernos de Saúde Pública, editado pela Escola
Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, chamado “A Cor da Dor”, observou as
disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao parto no país. Ele
foi elaborado com base na pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada a partir de
entrevistas e avaliação de prontuários de 23.894 mulheres.
—
Vimos que, em comparação às brancas, puérperas de cor preta possuíram maior
risco de terem um pré-natal inadequado e não terem uma maternidade à qual
estavam vinculadas desde o pré-natal. Elas buscaram mais de uma maternidade
para serem atendidas no parto, receberam menos anestesia local para episiotomia
e tiveram maior ausência de acompanhante. Puérperas de cor parda também tiveram
maior risco de terem um pré-natal inadequado e ausência de acompanhante, quando
comparadas às brancas — conta a médica, professora de Epidemiologia e
pesquisadora da Fiocruz Maria do Carmo Leal, uma das autoras do artigo.
A
médica explica que não foi realizado um estudo sobre o racismo institucional,
mas que, uma vez que o Brasil é um país racista, é possível supor que esses
resultados, assim como os índices de mortalidade materna — mais elevados entre
mulheres negras — tenham relação com o racismo.
De
acordo com o Ministério da Saúde, em 2018, mulheres pretas e pardas totalizaram
65% dos óbitos maternos no Brasil. Entre 1996 e 2018, foram registrados mais de
38 mil mortes maternas, sendo 67% decorrentes de causas obstétricas diretas:
“complicações obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a
intervenções desnecessárias, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de
eventos resultantes de qualquer dessas causas”.
—
O racismo se expressa em todas as dimensões do nosso cotidiano, está
introjetado em cada um de nós e nas nossas relações sociais. Entretanto, os
serviços de saúde têm a responsabilidade de oferecer serviços de qualidade para
todos. Discriminação racial ou de qualquer outra natureza atentam contra a sua
idoneidade e função social — defende a médica.
Na
avaliação de Emanuelle Goés, a violência e o racismo obstétrico são problemas
que iniciam na aprendizagem dos profissionais sobre as práticas relacionadas à
gestação. Ela cita como exemplo o médico Marion Sims, considerado referência na
ginecologia moderna, que realizava cesáreas em mulheres negras escravizadas,
nos Estados Unidos, sem utilizar anestesia.
—
Essa lógica de que mulheres negras aguentam mais dor tem essa raiz, não é algo
aleatório — analisa.
Por
isso, a pesquisadora defende que, para reverter o cenário, é preciso repensar
essas práticas no campo de formação profissional médica e de enfermagem.
—
Quando entendemos que certas práticas são violências, e temos estudos mostrando
que não há evidência de sucesso em sua implementação, por que continuar
realizando? Precisamos repensar o ensino a partir da questão da humanidade. Não
só o parto humanizado, mas na atenção como um todo, no pré-natal, parto,
puerpério ou aborto — diz Goés.
Maria
do Carmo Leal ressalta ser urgente que os gestores dos serviços de saúde
reconheçam esse cenário, identifiquem e enfrentem as práticas que
potencialmente resultam nas iniquidades raciais verificadas nos estudos. Ela
também avalia que, para isso, são necessárias medidas educativas voltadas aos
profissionais dos serviços de saúde.
—
Uma sugestão para impulsionar esta mudança seria incluir o item da equidade
racial na atenção à saúde como indicador de qualidade dos serviços para
acreditação hospitalar — afirma, em referência ao sistema de avaliação de
qualidade dos serviços de saúde.
As
especialistas apontam que não há uma definição legal para a violência
obstétrica no Brasil, embora já tenha sido reconhecida em documentos e
programas do Ministério da Saúde.
—
Em vários países latino-americanos tais como Argentina, Uruguai, Bolívia,
Venezuela, Panamá e México já existem leis punindo a violência obstétrica —
conta Leal.
No
entanto, Emanuelle Goés afirma que mulheres que identificarem esse tipo de
violência podem fazer a denúncia nos Conselhos de Enfermagem e Medicina, por
ter relação direta com a prática profissional, ou nas Defensorias Públicas.
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