Antes que a palavra “coronavírus” tomasse de vez o
noticiário, nenhum brasileiro chutaria que o barzinho teria que ficar para mais
tarde, que o trabalho remoto seria quase regra, que não ia ter futebol na
quarta-feira, e que o álcool em gel viraria item de primeira necessidade.
O Judiciário também teve que agir de supetão, suspendendo
prazos processuais, audiências de custódia e entrando em plantão judicial. Mais
do que isso, já que não existe manual de atuação para tempos de pandemia, os
magistrados se viram às voltas com temas em que sequer há jurisdição formada.
Uma das questões ainda mal resolvidas, por exemplo, é a de
como fica o direito de visita quando pais separados dividem a guarda dos
filhos, considerando que a principal recomendação para conter o avanço da
Covid-19 é o isolamento social.
Segundo a advogada Nélida Moreno, do escritório Moreno
& Crepaldi, é difícil saber qual caminho os magistrados estão tomando para
decidir sobre as visitas durante a pandemia, uma vez que julgados no âmbito do
direito da família estão geralmente em segredo de justiça.
Entre os casos que ela conhece, explica, “as decisões estão
sendo fundamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem como
regra fundamental o princípio do melhor interesse da criança”.
Precedentes
Até o momento foram publicizados apenas três casos
envolvendo guarda compartilhada. Em um deles, o juiz Eduardo Gesse, da 2ª Vara
de Família e Sucessões de Presidente Prudente (SP), proibiu que um piloto de
avião visitasse a filha por 14 dias, prazo recomendado para a quarentena.
Segundo o magistrado, “em razão da pandemia decorrente da propagação do coronavírus,
é realmente recomendável, por força da profissão exercida pelo requerido”,
evitar contato com terceiros.
No segundo, a 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de
Justiça de São Paulo estabeleceu o prazo de 14 dias antes que um piloto de
avião pudesse retomar a convivência com sua filha.
De acordo com Moreira Viegas, relator da ação, “a
convivência familiar é de extrema importância e deve ser preservada, mas é
imprescindível que o convívio ocorra de forma saudável, garantindo que a
criança esteja protegida em todos os aspectos. Precisamos de empatia e
solidariedade, assim, mostra-se imprescindível que os familiares protejam uns
aos outros nesse momento, sem pânico e com responsabilidade”.
Por fim, também foi resolvido por via judicial o caso de
um pai que quis permanecer vendo a filha, que tem problemas respiratórios,
mesmo depois de passar por aeroportos e voltar de uma viagem internacional.
Na ocasião, o desembargador José Rubens Queiroz Gomes, da
7ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, determinou a suspensão das visitas por
considerar que, devido ao quadro de saúde da criança, não haveria prejuízo caso
o genitor se afastasse fisicamente por 15 dias.
Moreno atuou no último caso defendendo a mãe. Ela conta
que a mulher buscou, de forma amigável, a suspensão temporária das visitas. Não
houve, no entanto, anuência entre as partes.
“Ele [o pai] foi irredutível. A tese apresentada pela
defesa foi a de que é preciso ter cautela extra, pois a menina, provavelmente,
não iria sobreviver se fosse contaminada”, afirma a advogada.
Para ela, ainda que nesse caso a disputa tenha sido
resolvida, “realizar acordo é o melhor cenário, já que o judiciário ficará
lotado de novas demandas que irão surgir em razão da Covid-19”.
Acordos
Dada a relevância e a gravidade da pandemia, algumas
famílias acabaram se ajustando temporariamente a outro formato de convivência,
sem que para isso tivessem que recorrer à Justiça.
Clarissa Campos Bernardo, vice-presidente da Comissão de
Direito de Família do Instituto dos Advogados de São Paulo e Conselheira da
OAB-SP, relata que seu escritório teve alguns casos nos quais as partes
compuseram pontualmente, dada a situação emergencial.
Um dos acordos envolve uma criança que reside com o pai,
que é médico. Como ele está mais suscetível ao vírus, já que faz parte de uma
profissão com maior risco de contrair a doença, a criança foi para a casa da
mãe.
“Em outro, o pai é médico e tem dois filhos de mães
diferentes. Ficou acordado o contato por meio de vídeo, ainda que um dos filhos
tenha apenas um ano. O pai está tranquilo com essa restrição, pois sabe que é
necessária e transitória”, conta.
Por não haver jurisprudência consolidada sobre o tema,
Bernardo afirma que os magistrados devem ser bastante criteriosos ao analisarem
os casos concretos, optando sempre por zelar pelo bem estar da criança quando
existir risco de contágio.
“Se o pai que exerce o direito de visitas mora em outro
estado, o juiz poderá suspender as visitas no período de quarentena e na
própria decisão já colocar que haverá compensação oportunamente”, diz.
No entanto, argumenta, em situações mais corriqueiras, em
que os pais não estão em situação de risco, mas que existe a necessidade de
deslocamentos curtos, os genitores podem e devem decidir por revesar a
convivência, ficando com a criança em igual período de tempo.
“O juiz deve decidir sobre o caso concreto, levando em
consideração sempre o interesse da criança, mas observando com muito rigor as
razões do pedido de modificação ou suspensão do regime de visitas. Digo isso,
pois infelizmente existe o risco de muitas pessoas aproveitaram o momento,
afastando a criança do genitor com o qual não reside.”
Recomendação
É certo que existem conflitos sendo levados à análise do
Judiciário, e nas próximas semanas, provavelmente haverá um número maior de
precedentes que podem indicar o direcionamento da jurisprudência.
“Por enquanto, o que se nota é que há pouquíssimos casos
analisados que tratam diretamente a questão da guarda e convivência diante da
necessidade do isolamento social. Além disso, a pesquisa é dificultada pelo
fato destes processos tramitarem sobre segredo de justiça. Na maioria dos
casos, só é possível identificar o
entendimento da primeira instância a partir do momento que as decisões
interlocutórias são objeto de recurso”, explicam as advogadas Camila Ramalho e
Natália Takeno Camargo.
Elas explicam que algumas medidas já foram tomadas para
pacificar a questão das visitas. Uma delas partiu do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que publicou uma recomendação
em 25 de março sobre o tema.
Entre outras coisas, o conselho sugere que as visitas e os
períodos de convivências ocorram preferencialmente por telefone ou on-line. No
caso de um dos responsáveis ter voltado de viagem ou ter sido exposto à
situação de risco, o Conanda recomenda isolamento pelo período de 15 dias.
Além disso, de acordo com a orientação, o deslocamento da
criança ou do adolescente deve ser evitado e, no caso de acordada a visita ou
permissão para o período de convivência, todas as recomendações de órgãos
oficiais devem ser seguidas.
Um projeto de lei (PL 1.627), de autoria da senadora
Soraya Thronicke (PSL/MS) também sugere medidas no âmbito do direito de família
e tem um capítulo específico que dispõe guarda compartilhada.
Segundo a proposta, o regime de convivência de crianças e
adolescentes, qualquer que seja a modalidade de guarda, poderá ser suspenso
temporariamente, de comum acordo entre os pais ou a critério de um juiz, para
que sejam cumpridas as determinações de isolamento social ou quarentena.
“Além dos próprios genitores, a doutrina tem trazido
soluções bastante criativas para compatibilizar a convivência familiar com a
necessário isolamento social. Por exemplo, podemos citar a recomendação do
atual período sem convivência física com um maior convívio depois a que
pandemia for superada, ou analisando as possibilidades da família aplicar a
regulamentação das férias, com a criança ficando períodos mais longos,
geralmente 15 dias com cada um dos genitores, de modo a reduzir o
deslocamento”, afirmam Ramalho e Camargo.
Independentemente das soluções pactuadas, ressaltam as
advogadas, “é importante assegurar que não se sacrifique demasiadamente a
convivência familiar, garantindo que o genitor que não reside com a criança
tenha contato constante com o filho, ainda que virtual ou telefônico, a fim de
que a suspensão do contato físico não implique a fragilização do vínculo
afetivo”.
Tiago Angelo é
repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2020-abr-20/fica-guarda-compartilhada-tempos-coronavirus
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