No
Brasil a escravidão é mãe da tortura, da discriminação racial, dos genocídios e
da exclusão social. E estas se incrustaram no DNA das elites e em parcelas da
classe média!
A
tortura e o assassinato foram praticados como instrumentos de submissão de modo
contumaz e corriqueiro, em todos os períodos de nossa História. No Brasil
Colonial e durante o Império, os alvos preferências eram os índios e os negros
escravos; já na República, quer em seus períodos ditatoriais e mesmo nos curtos
intervalos democráticos, com grau maior ou menor de abrangência, aos índios e
aos negros juntaram-se os mulatos, os cafuzos, os mestiços e brancos, desde que
pobres ou marginalizados. Ou seja, a tortura e o assassinato como formas de
submissão, de castigo ou de simples satisfação sádica, percorrem todos os
nossos cinco séculos de “civilização branca”.
De
tal forma que é lícito afirmarmos que a violência e a barbárie incrustaram-se,
desde nossa origem colonial, no DNA daqueles que exerceram e exercem o poder de
fato no Brasil.
Nesse
ensaio os focos serão algumas crônicas jornalísticas e literárias que mostram a
tortura e o assassinato como instrumentos de segregação racial e social em sua
própria origem, o escravagismo.
O
jornalista, teatrólogo e abolicionista Arthur de Azevedo, no alvorecer do
século XX, resenha os tipos de tortura infringida aos escravos nas cidades. A
aplicação de açoites nos pelourinhos, colunas de pedras advindas da velha
tradição de suplício na Roma Imperial, erguidas em praça pública. Na parte superior,
essas colunas tinham pontas recurvadas de ferro, onde se penduravam os
condenados à forca. “O espetáculo era anunciado publicamente pelo rufar dos
tambores e era grande a multidão que assistia ao látego do carrasco abrir
estrias de sangue no dorso nu do negro e a malta aplaudia e se excitava com as
sevícias”.
Azevedo
nos relata, em outra reportagem, o uso de um instrumento de tortura
corriqueiro, muitas vezes utilizado nas próprias residências ou oficinas de
ofício: a palmatória. “Arrebentavam-lhes mãos e pés, provocando violentas
equimoses”. E esse instrumento de sevícias caminhou incólume desde a escravidão
até os dias de hoje, sobretudo em postos policiais, haja vista ser instrumento
banal, confundível, de custo praticamente zero e que não deixa outras marcas
típicas da tortura.
Em
fazendas do nordeste e do sul, a crueldade dos senhores-de-engenho e feitores
atingia extremos incríveis, como a prática das “novenas” e “trezenas” para
matar: o corpo do escravo era cortado por navalhas, recebia a aplicação de
salmoura e “o negro” era deixado a morrer de “morte natural”. Normalmente tal
tratamento era reservado a negros fugidos ou rebelados.
Já
o ferro em brasa, embora fosse uma forma de tortura, era corriqueiramente
utilizado como uma maneira de marcar o “gado humano”.
Mutilações,
estupros de negras escravas, castração, amputação de seios, fratura de dentes a
marteladas… É longa, muito longa a série do sadismo requintado aplicado contra
os escravos.
Reporta-nos
ainda Arthur de Azevedo que havia processos “verdadeiramente chineses como o da
aplicação de urtigas, insetos e o da “roda d’água””. Nesta roda, os senhores do
sul manietavam os escravos nus atraves de teto e untavam os corpos com mel ou
sal para que os insetos viessem aferrá-los. Outras vezes eles eram untados com
leite e deixados amarrados ao solo para pasto de ratos. No próprio suplício da
“roda d’água” as máquinas dilaceravam os membros do escravo.
O
“tronco” era um velho instrumento conhecido em todos os lados. Consistia de um
grande pedaço de madeira regular, aberto em duas metades, com buracos maiores
para a cabeça e menores para os pés e as mãos. Normalmente um “tronco” tinha
espaço para a submissão de até três pessoas. Após a abolição da escravatura,
escreve Azevedo, seu uso permaneceu como forma de tortura na detenção de
suspeitos por roubo de cavalos ou por outros delitos. Uma variedade do tronco
de madeira era o vira-mundo, feito de ferro. Tinha a mesma finalidade daquele,
prender a cabeça, as mãos e os pés do escravo.
Já
o “cepo” consistia de um grosso pedaço de madeira que o escravo carregava à
cabeça e que era preso por uma longa corrente a uma argola abraçando-lhe o
tornozelo.
Dentro
deste verdadeiro parque de terror, existiam instrumentos formados por correntes
e argolas, de variadas espécies. Azevedo principia com o lilambo, instrumento
que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde saía uma haste
que se dirigia em forma de gancho para cima, onde se costumava colocar um
chocalho; este instrumento era destinado ao negro fugido e recapturado. Já a
gonilha ou gargantilha servia para atrelar os escravos uns aos outros. As
algemas, machos e peias eram confeccionados de diferentes tamanhos, uns para
escravos fortes, outros para mulheres, ainda outros para meninotes. Muitas
vezes ligava-se um peso à peia presa ao calcanhar para dificultar o caminhar ou
o fugir.
Os
“anjinhos” eram instrumentos de suplício, como os “vis-à-pression” das colônias
francesas ou inglesas. Eles prendiam os dedos polegares das vítimas em dois
anéis semicirculares que se comprimiam lentamente através de uma chave, levando
ao esmagamento dos dedos. Esse tormento normalmente era empregado para a
obtenção de confissões, nas fazendas e delegacias.
Uma
“máscara” era utilizada pelo escravo que furtava cana ou rapadura. Feita de uma
folha-de-flandres, ela tomava todo o rosto e fechava-se atrás por um cadeado.
Apenas alguns orifícios permitiam a respiração e o escravo com máscara não
podia comer nem beber sem permissão e permanecia nesse suplício por dias
inteiros.
Alguns
engenhos haviam desenvolvido uma espécie “pau-de-arara”. Uma cana de madeira ou
de ferro era afixada na parte traseira dos joelhos, com as mãos e os pés
mantidos manietados. O supliciado poderia ser açoitado, sofrer palmatórias ou
até mesmo ser empalado, estando no chão imobilizado ou colocado sobre um
suporte de cavaletes.
A
fantasia de muitos senhores de escravos provavelmente engendrou outros instrumentos
de suplício que escaparam a essa descrição feita por Arthur Azevedo. Muitos se
perderam, outros foram escondidos ou se deterioraram.
O
negro fugido e o capitão-do-mato, uma invenção carioca.
Uma
crônica de Vivaldo Coaracy, inserida no livro “Rio de Janeiro no século XVII”,
nos diz que em meados do século, as fugas de negros do cativeiro e a formação
de quilombos nas Serra dos Órgãos, da qual desciam para assaltar propriedades
rurais e aliciar outros escravos, levou a Câmara do Rio à instituição de
prêmios pecuniários para a prisão de negros fugidos, fixando taxas a serem
pagas pelos proprietários dos mesmos. Com isso, uma nova profissão surgiu na
província, e tornaram-se numerosos os caçadores de escravos, denominados de
capitães-do-mato.
O
mais famoso por sua audácia e eficiência foi Manuel João da Silva, que trouxe
acorrentadas mais de trezentas cabeças. Como os proprietários dos escravos, uma
vez recuperada a presa, regateavam o pagamento das taxas, coube ao Poder
Público intervir. A Câmara decidiu organizar uma milícia civil armada, a
primeira do Estado do Rio, que teria direito a dois terços do valor do escravo
capturado, além de todas as “crias” que apanhasse no mocambo. Aos escravos que
tivessem cometido crimes contra seus donos, a milícia tinha ordem de
executá-los e o Poder Público garantiria a recompensa financeira.
Como
vemos, a Parceria Público Privada vem de longa data.
Depois
de Manuel, quem assumiu o comando da milícia foi o capitão-do-mato Atanásio
Pereira, miliciano cuja residência e estado maior foi construída na fazenda dos
Jesuítas, nos contrafortes da Serra dos Órgãos, com o selo “sagrado” da
proteção espiritual.
Já
Machado de Assis em “Relíquias da Casa Velha”, nos traz o conto ‘Pai contra
mãe’. O personagem tomava como figurino o famoso Manuel João. Sem profissão
definida e com expressa preguiça para destinar-se ao trabalho manual, após
casar torna-se um caçador de escravos por recompensa. Sua mulher, grávida, tem
um filho. A profissão de caça ao negro sofre muita concorrência e os
proprietários de escravos regateiam o pagamento anunciado. Sem dinheiro, o
filho que o pai ama deve ser entregue ao orfanato. Na última hora ele
identifica na rua uma negra fugitiva, que buscara algum abortivo numa farmácia.
Ele a agarra, a amarra e a devolve, com sangramento e tudo, para seu
dono-estuprador. Recebe a recompensa prometida e o seu filho pode voltar a ter
um lar.
A
fina ironia machadiana se expressa: “Ora, pegar escravos fugidos era um ofício
do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a
lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações
reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a
pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem”.
Sobre
Gilberto Freire, disse-nos Monteiro Lobato: "O Brasil do futuro não vai
ser o que os velhos historiadores disserem e os de hoje repetem. Vai ser o que
Gilberto Freyre disser”. E Freyre, em “Casa grande e senzala”, nos fala de um
país que jamais conseguiu romper os laços malignos criados pela segregação e
pelo escravagismo. Talvez seu livro seja o melhor instrumento para se entender
o nível de barbárie a que se chega num pais que foi o último da América a
abolir a escravidão.
Descreve
os numerosos anúncios de negros fugitivos e procurados mediante recompensa para
caçadores de cabeça. Muitos procurados são descritos como “rendidos” ou
“quebrados”, no sentido de haverem sido, de uma forma ou outra, castrados.
Também “pretos” com “veias estouradas ou calombos no corpo”, escravos com andar
“cambaio ou banzeiro”.
Outros
negros são descritos como portadores de máscaras de flandres na face, ligadas
por cadeado na parte traseira. Adicionam os senhores de escravos que se tratava
de pessoas com voracidade por frutas, mesmos verdes.
Nos
Anais Brasileiros de Medicina, o médico Gama Lobo identificou um determinado
tipo de oftalmia em escravos com sintomas, que ganhou a denominação científica
de “ophtalmia brasiliensis”, provocada por sério grau de avitaminose.
Outros
anúncios procuram negros cegos de um olho por “vazamento”, “caolhos”, e ainda
vários escravos “com carnes sobre os olhos”. São comuns “negros fugidos”
descritos como possuidores de um braço maior que o outro, com falta de dedos
nas mãos ou nos pés.
Numerosas
descrições apresentam pessoas que apresentavam nas coxas ou nas costas letras,
sinais ou carimbos de propriedade, da mesma forma como o gado é tangido. Quando
não, marcas de surras e castigos, corpos deformados por torturas. Uns com “os
quartos arriados” em virtude de tremendas surras, outros com cicatrizes
provocadas por relhos aplicados nas costas ou nas nádegas; ainda outros com
cicatrizes nos dedos provocadas pelos “anjinhos” e marcas na cabeça pelo uso de
torniquetes com pregos, as “coroas de Cristo”. Também são comuns as cicatrizes
provocadas pelo “tronco”, pelas correntes com que os atavam nos pescoços, nos
pés, nos tornozelos; queimaduras na face e na barriga.
Não
são poucos os anúncios de negros com marcas provocadas por tentativas de suicídio:
talhos feitos à faca na garganta, no peito, nos pulsos.
Negros
caçados que apresentam deformações de pernas e cabeça que podem ser atribuídas
ao hábito das mães escravas trazerem os molequinhos de mama “escanchados” às
costas durante horas e horas de trabalho. Já parte das deformações anunciadas
como a de negrinhos com “pernas cambaias”, “pernas tortas para dentro”, braços
e pernas “muito finos” e arqueados, “peitos estreitos”, podem, sem dúvida,
serem debitadas ao raquitismo e à fome.
Faltam
ressaltar as deformações corporais por especialização profissional ou
precocidade no trabalho. Vários negrinhos de dez a doze anos já apresentam a
“croa” na cabeça, feita à força pelo peso de carretos brutos como tabuleiros,
tijolos, areia, etc. Há caso de negros com os dedos dos pés “torrados ou
comidos”, por serem amassadores de cal. Outros com dedos e mãos amputados pela
ação das moendas dos engenhos. Quase todos com pés e mãos desproporcionais,
deformados pelo trabalho pesado já na infância.
O
negro se sifilizou na escravidão.
Diz
Freyre: “Passa por um defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o
erotismo e a luxúria exacerbada”. Mas o que se tem apurado dentre os povos
africanos, diz o autor, é, sim, uma maior moderação do apetite sexual que entre
os europeus. Os africanos são mais sofisticados dado que para excitarem-se
necessitam de certas circunstâncias especiais, como danças, afrodisíacos,
cultos fálicos e orgias. Já os europeus excitam-se por qualquer motivo.
“Não
há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime, pois em
primeiro lugar, a própria ganância favorece a depravação, criando nos
proprietários de escravos o desejo de produzir o maior número possível de
crias. Joaquim Nabuco colheu de um manifesto escravocrata de fazendeiros do
interior de São Paulo, as seguintes palavras: a parte mais produtiva da
propriedade escrava é o seu ventre gerador”.
Freyre
ainda faz referências específicas aos anúncios a respeito de sequelas de
doenças sexualmente transmissíveis descritas em muitos negros fujões: “não são
raros os casos de doentes de “boubas” e úlceras na pele, assim como feridas
descritas como “que nunca saram”, nos braços e pernas”, assim como de negros
descritos como “enlouquecidos”, uma possível fase neurológica da sífilis.
Joaquim
Nabuco, alicerçado em documentos, também comprovou a tese de que “o negro se
sifilizou no Brasil” e a contaminação em massa ocorreu nas senzalas. A “raça
considerada inferior” adquiriu da “superior”, dos brancos senhores de escravos,
as doenças venéreas. “Negras tantas vezes virgens, ainda molecas de doze a
treze anos, eram entregues a rapazes brancos já podres da sífilis contraída nas
cidades”.
Por
muito tempo dominou no Brasil colonial a crença que para sifilítico não havia
melhor depurativo que uma negrinha virgem.
Nem
mesmo as amas de leite negras estavam livres do contágio sifilítico
proporcionado por crianças brancas contaminadas. “De tal forma que a sífilis
fez sempre o que quis no Brasil colonial”, graças ao escravagismo. “O sangue
envenenado arrebentava em feridas; coçavam-se então as “perebas ou cabidelas”,
tomavam-se garrafadas, chupava-se caju”.
Durante
todo o século XVIII e XIX, o Brasil é citado em livros estrangeiros como o país
da sífilis por excelência. Nem mesmo mosteiros eram considerados locais a salvo
das devastações provocadas pelo mal gálico.
No
Brasil a escravidão é mãe da tortura, da descriminação racial, dos genocídios e
da exclusão social. E estas se incrustaram no DNA das elites e em parcelas da
classe média!
Afinal,
como diz Caetano: “enquanto os homens exercem seus podres poderes, matar de
raiva, de fome e de sede são, tantas vezes, gestos naturais”.
Obs.:
Nosso estudo foi concluído com dor, repulsa e ódio contra os malditos
corruptores e destruidores da humanidade, a canalha fascista que está se
apossando de nosso país. Ágathas, Jenifers, Kauãs, Letícias, Launes, crianças
negras, mulatas, brancas, todas pobres, abatidas pela bestialidade dos capitães
do mato do século XXI a soldo de genocidas. A elas dedicamos estas tristes
páginas.

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