Testemunha da Bulgária comunista, o historiador Tzvetan
Todorov[1], ao ensaiar quais seriam os inimigos à democracia na
contemporaneidade, aponta o dedo não para as tão temidas ameaças externas ao
modelo, caso do próprio comunismo que viu apoderar-se de seu país de origem
durante sua juventude, por exemplo, mas para um fenômeno interno — íntimo,
portanto —, possível, sobretudo, a partir das regras do jogo democrático: o
fortalecimento de partidos de viés populista.
Atemporal, a questão é, inegavelmente, oportuna ao
contexto brasileiro e abre no debate político da atualidade um amplo catálogo
de interrogações: mais bem acabado produto de uma crise da democracia
representativa em uma escala sem precedentes? Inevitável reflexo de outra crise
— esta cíclica —, relacionada ao capitalismo que sustenta os modelos de
bem-estar nessas mesmas experiências democráticas? Ou, a partir desse mesmo
enredo econômico, saldo típico da dependência política dos resultados da
economia?
Essas são algumas questões, sem dúvida importantes, mas
não exatamente o que move este pequeno texto[2]. É que o populismo, conceituado
em clássica leitura como uma tentativa de abolir as distâncias entre o povo e o
poder através de um discurso demagógico, alinhado ao interesse do maior número de
pessoas e transformado em uma demanda dirigida — mas não atendida — às
instituições, fácil de assimilar e, ao mesmo tempo, difícil ou impossível de
ser realizado, parece fragilizar conquistas alinhadas ao Estado de Direito. É
esse o ponto que, penso, merece atenção da comunidade acadêmica, sobretudo a
jurídica.
A partir disso, portanto, proponho uma premissa que,
oportunamente, também serve para introduzir a discussão: o populismo é mais que
um discurso à margem das instituições atrás da capitalização política. Embora
persiga tal objetivo, ele toca a superfície mais sensível de problemas reais
típicos do chamado grande número, e seus protagonistas são hábeis atores em
identificá-los. De outro modo: ao lado da solução mítica que lhe encerra — e
que em boa medida o caracteriza —, o discurso populista percebe os pontos de
insuficiência da corrente orientada como racional e, a partir daí, promete a
solução, como vem se colocando, no Brasil, uma espécie de marcha contra a
criminalidade, a qualquer preço, por exemplo.
Assim, é possível traçar um paralelo: se é na
reivindicação frustrada que o populismo encontra seu solo fértil, formando a
tríade também composta de democracia e instituições, seu espaço é aquele em que
expressiva parcela dos dispositivos da Constituição não obteve, até hoje,
efetivação. Embora Laclau — de quem se extrai a premissa acima — perceba o
fenômeno como importante ingrediente transformador das relações sociais
contemporaneamente[3] (ponto que, sublinho, discordo), seu surgimento supõe, na
verdade, um empobrecimento do papel da teoria constitucional. Claro. Afinal,
nesse viés, a Constituição seria, e não mais que isso, apenas garantidora do
acesso aos mecanismos de participação democrática no sistema, nublando — aí sim
— o papel do Direito como um fator de transformação social. É dizer: admite-se
não apenas mero papel procedimentalista[4] à jurisdição, mas, também, uma
paradoxal espécie de democracia totalitária, em que o acesso ao poder se dá
através do voto, mas seu exercício desvincula-se da Constituição. Nesse
recorte, a partir dessa confusa combinação de fatores, o Direito e as
instituições não seriam agentes transformadores no constitucionalismo
contemporâneo, âmbito em que o Direito assume elevado grau de autonomia[5]. De
outro modo, ao esperar do líder — e não do Direito democraticamente produzido e
das instituições por ele balizadas — a solução à reivindicação, é um passo
atrás no fortalecimento de nossos vínculos republicanos.
Nesse sentido, não é desarrazoado referir, no contexto em que
se verifica o fenômeno do populismo, enfraquecimento do sentido da nossa
Constituição. Há, afinal, uma espécie de reorganização de sentidos (em crítica
alinhada a que Lenio Streck faz em relação ao positivismo jurídico), como
parece figurar bom exemplo a plataforma eleitoral, convertida em política de
combate ao crime organizado no estado do Rio de Janeiro, de seu atual
governador, Wilson Witzel. E isso porque, ao propor o abate de indivíduos como
“política” criminal, como cotidianamente faz em suas manifestações[6], ele
desvincula a atividade estatal da Constituição. Longe da intersubjetividade que
molda regimes democráticos, a ação do Estado é, assim, não mais que um ato de
vontade, portanto.
Eis, afinal, o ponto de conexão entre exemplo e crítica:
em contexto em que as instituições figuram distantes das demandas sociais e,
pior, no imaginário popular apresentam-se como lócus privilegiado à prática
criminosa, observa-se que esse mesmo imaginário aceita, em todos os níveis,
portanto, uma indistinta discricionariedade de operadores do Direito, fazendo
coro a uma espécie de contramedida ao famoso jargão em que a polícia prende e o
juiz solta. É preciso, pois, outro ato discricionário, fazendo suceder,
indistintamente à margem do texto constitucional, vontades de poder para dar
conta do problema socialmente demandado. É nesse espaço que o discurso
populista se insere, buscando atender a uma reivindicação frustrada (no exemplo
utilizado, o institucional e insuficiente combate à criminalidade, sobretudo,
nas metrópoles brasileiras), através de uma solução não apenas mítica, rápida
(a sumária execução de indivíduos, através das polícias militares), mas, ainda,
à margem das instituições (neste caso, a Defensoria Pública do Estado e a
Secretaria de Segurança Pública do Estado)[7]. A criminalidade — ao atingir
níveis cada vez maiores, sobretudo nos grandes centros urbanos — é um problema
real, portanto, a abrir as portas ao discurso populista e sua mítica solução.
Desvelado está, pois, seu espaço e seu contexto.
Como o direito de matar, entretanto, não é reservado aos
órgãos de segurança pública (artigo 144, CF/88), ainda que exerçam o
policiamento ostensivo (caso das polícias militares) [8][9], e a vida é,
ademais, inviolável (artigo 5º, caput, CF), a referida “política pública”
(necessariamente com aspas) seria, portanto, uma tentativa de reescrever a
Constituição?
Parece-me que sim. Afinal, projetar “política pública” de
combate à criminalidade através do extermínio é discricionariedade para além do
permitido em âmbito executivo e legislativo. É, pois, tentativa de reescrever a
Constituição. Justamente por isso, entende-se que o populismo se projeta
reflexivo também a essa crise — do Direito e da democracia —, mas não se
coloca, claro, como resposta legítima a ela. Ao contrário, agrava-a. Afinal,
ocorre à margem das instituições, e se dá, portanto, fora do jogo de
linguagem[10] que é o Direito.
Para encerrar: o discurso populista coloca-se como um
íntimo inimigo da democracia — para lembrar mais uma vez a feliz expressão de
Todorov —, acenando para significativos impactos no Estado Democrático de
Direito. E isso porque, ao se projetar como uma tentativa de (re)significar
sentidos — em que as propostas de Witzel são apenas um exemplo —, o populismo
ultrapassa, nesse caso, os indispensáveis mecanismos de contenção do poder das
maiorias, típicos do Estado Democrático de Direito. É lógico: ainda que
alinhada à demanda institucionalmente não satisfeita, o agir político não pode
atentar contra as garantias constitucionais voltadas a limitar os excessos do
Estado. Como bem sublinhado no segundo capítulo de Verdade e Consenso, “uma
vontade popular majoritária permanente, sem freios contramajoritários, equivale
à volonté générale, a vontade geral absoluta propugnada por Rousseau, que se
revelaria, na verdade, em uma ditadura permanente”. Ou seja, a indiscriminada
filiação à vontade popular como forma de acessar e manter-se no poder,
aproximando o demos da realização de seus desejos à margem dos necessários
mecanismos contramajoritários, ignora a “essência do Estado de Direito”, que é,
enfim, a “submissão do poder ao [próprio] Direito”[11].
[1] TODOROV. Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia.
Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] Síntese de Os impactos do discurso populista no Estado
Democrático de Direito, inédito.
[3] Na edição brasileira de On Populist Reason, Laclau
observa que “quando um projeto de transformação social profunda começa a ser
implementado, ele entrará em choque, em vários pontos, com a ordem
institucional vigente, e esta terá de ser modificada mais cedo ou mais tarde”.
O populismo, ao colocar-se contra as instituições, corresponderia, entre outros
fatores, a um fator de transformação social. LACLAU, Ernesto. A razão
populista. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Três
Estrelas, 2013, p. 20. Grifo nosso.
[4] Em que Habermas e Garapón sejam, talvez, os maiores
expoentes. GARAPÓN, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris: Odile Jacob, 1996.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
[5] Como referido no Dicionário de Hermenêutica, o
“Constitucionalismo Contemporâneo é um fenômeno que surge no segundo
pós-guerra. Essa expressão foi cunhada no livro Verdade e Consenso para superar
as aporias das teorias neoconstitucionalistas [...] representa(ndo) uma
blindagem às discricionariedades e aos ativismos”. Nesse contexto, não se perde
de vista, sobretudo, que o “aspecto material da constitucionalização do
ordenamento consiste na conhecida recepção no sistema jurídico de certas
exigências da moral crítica na forma de direitos fundamentais. Em outras
palavras, o Direito adquiriu uma forte carga axiológica, assumindo fundamental
importância a materialidade da Constituição”. É justamente por isso que não se
pode afastar o seu caráter, evidentemente, transformador. STRECK, Lenio.
Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à
luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do
Direito, 2017, p. 37-38.
[6] “Em diversas oportunidades, Witzel defendeu que
policiais atirem para matar ao verem criminosos armados, ainda que não haja
risco iminente de confronto - condição necessária para configurar legítima
defesa, segundo a legislação atual. Em novembro, logo após ser eleito, ele
afirmou ao jornal "O Estado de S. Paulo" que "a polícia vai
fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro”.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/10/por-defesa-de-abate-de-suspeitos-witzel-entra-na-mira-da-pgr.htm?cmpid.
Acesso em: 28 jul. 2019.
[7] Em maio, em operação realizada pela polícia
fluminense, “é possível ver um sniper da Core (Coordenadoria de Recursos
Especiais), a força de elite da Polícia Civil, disparando uma rajada de fuzil
contra uma tenda utilizada por evangélicos que fazem vigílias na região,
segundo vídeo exibido pela "TV Globo". A ação viola protocolos
estabelecidos pelo próprio governo do Rio. Em outubro, após decisão liminar
obtida pela Defensoria Pública do Estado, a Secretaria de Segurança do Rio
(extinta por Witzel em janeiro) publicou uma instrução normativa com uma série
de orientações para a realização de operações policiais. Entre elas, está a
proibição de que atiradores em helicópteros disparem rajadas contra
comunidades”. Disponível em
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/10/por-defesa-de-abate-de-suspeitos-witzel-entra-na-mira-da-pgr.htm?cmpid.
Acesso em: 28 jul. 2019.
[8] Por certo não se desconhece as situações envolvendo
legítima defesa ou o risco de morte de outrem, sob ameaça.
[9] Há, contudo, fragilização desse limite à atuação
estatal, com o chamado pacote anticrime do Ministro Sérgio Moro e o excludente
de ilicitude que isenta de pena agentes de segurança pública que matarem
"em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado" e a
imunidade para qualquer pessoa que cometer crimes sob “escusável medo, surpresa
ou violenta emoção”. BRASIL. Anteprojeto de Lei Anticrime. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf.
Acesso em: 4. fev. 2019.
[10] No sentido wittgensteiniano da expressão, à luz com
as Investigações Filosóficas. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas.
Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição,
Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 87.
Giancarlo Montagner Copelli
é doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos), em estágio pós-doutoral na mesma instituição.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-ago-10/diario-classe-discurso-populista-tentativa-reescrever-constituicao
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