Resumo:
uma coisa ficou marcada e institucionalizada na audiência no Senado desta
quarta-feira (19/6) — a de que é normal a promiscuidade entre juiz e membro do
MP. "Isso é normal." Será?
Benjamin
Franklin dizia: "A cada minuto, a cada hora, a cada dia, estamos na
encruzilhada, fazendo escolhas. Escolhemos os pensamentos que nos permitimos
ter, as paixões que nos permitimos sentir, as ações que nos permitimos fazer.
Cada escolha é feita no contexto do sistema de valores que elegemos. Elegendo
esse sistema, estamos também fazendo a escolha mais importante de nossas
vidas".
Na
semana passada, ainda no calor dos acontecimentos, falei em diversos veículos
que o Direito brasileiro já não seria mais o mesmo: DAI-DDI (Direito Antes de
Intercept - Direito Depois de Intercept). Mantenho o que disse. Mas, como disse
Ben Franklin, estamos na encruzilhada.
Então
é hora de escolher. A mudança será para pior ou para melhor? Qual é o sistema
que vai guiar nossas escolhas a partir daqui? Será o atropelo da legalidade e
seu consequencialismo ad hoc? Como serão vistos, a partir de agora, a
Constituição, o CPP, seus princípios e garantias? Escolheremos, afinal, o
Direito ou a barbárie?
Tudo
vai depender de algumas coisas como: acha(re)mos normal que juiz não tenha
imparcialidade? Concorda(re)mos que juiz possa ser acusador? Juiz pode
“comandar” o atuar do MP?
Nossas
respostas decidirão o futuro do Direito no Brasil. E, atenção: não esqueçamos
que vivemos sob a febre de que temos um sistema de precedentes. Pois se ficar
decidido que juiz que fez tudo o que fez Moro é um “juiz normal e legal”,
então, pelo precedente que daí exsurgirá, todos os juízes poderão fazer o
mesmo. E os membros do Ministério Público também poderão fazer o mesmo que
Dallagnol. Eis a escolha: Estado de Direito ou Estado à margem do Direito[1].
Não
se pode tapar o sol com uma peneira. Jornalistas e jornaleiros (assim como
incontáveis juristas, como, por todos, Marcelo Nobre, Érica Gorga, Juarez
Tavares, Leonardo Yarochewsky e o contundente artigo de Miguel Weddy no jornal
Zero Hora, intitulado “A Linha”) já sabem de tudo. No âmbito do jornalismo,
basta ler de Reinaldo Azevedo a Pompeu de Toledo, passando por Jânio de Freitas,
Dora Kramer, Élio Gaspari... Todos reconhecem e apontam o agir ilegal de Moro e
Dallagnol[2]. Ou toda essa gente está equivocada, fazendo parte de uma espécie
de conspiração?
E
a trama é maior do que os vazamentos indicam, pois já se via no agir de Janot
(enquanto houver bambu, vai flecha, lembram?) quando à testa do CNMP e PGR,
dando a Dallagnol a mesma proteção que o CNJ, o TRF-4 e o STF deram ao agir de
Moro (lembremos do episódio da divulgação das escutas telefônicas de Lula e
Dilma, que, como se pode ver, o vazamento foi fruto de combinação de Moro e
Dallagnol, dando para ler Moro dizendo: “não me arrependo de ter divulgado”,
enquanto pedia desculpas insinceras em longa carta escrita ao STF).
Alguém,
depois de tudo, ainda tem dúvida de que o agir (estratégico) de Moro e
Dallagnol, enfim, da "lava jato" como um todo, foi um exercício de
lawfare, o uso político do Direito contra inimigos? E veja-se que isso era tão
cuidadosamente planejado a ponto de não querer que amigos fossem melindrados
(Intercept de 18/6). E o procurador chega a dizer que a investigação contra FHC
— considerada, por Moro, como a possibilidade de melindre de um amigo — era só
para demonstrar imparcialidade.
Como
disse Élio Gaspari, Moro e Dallagnol se autoenganam, assim como aqueles que não
querem enxergar o conjunto de ilegalidades praticadas. Um “magnífico” — as
aspas estão na moda — exercício de autoengano, escondido na tese da
plebiscitação do escândalo, pelo qual não importa se a "lava jato"
agiu ilegalmente; o que importa é saber se você é a favor ou contra a
"lava jato", como se o Brasil pudesse transformar esse escândalo em
um simples Fla-Flu. Ou em um programa do Ratinho.
Indubitavelmente,
plebiscitar o escândalo — como denuncia Gaspari — é fazer pouco da inteligência
de uma boa parcela da população. E ignorar os efeitos colaterais dessa quebra
da legalidade.
Vamos
esconder as ilicitudes e praticar um consequencialismo ad hoc?
O
que fazer com todas as ilegalidades? Juristas e jornalistas já apontaram o
elenco de elementos que apontam para a quebra da imparcialidade. Este é o
ponto. No depoimento ao Senado, questionado pelo senador Kajuru, Moro chegou a
dizer que a indicação de uma testemunha à Dallagnol tinha sido uma notitia
criminis enviada via mensagem (repasse de notitia criminis). Dizer o que sobre
isso? É a primeira vez que um juiz faz notitia criminis via mensagem de
telefone para o próprio órgão acusador que iria se beneficiar desse depoimento.
Isso é normal?
Moro
e Dallagnol, no início, não negaram o conteúdo dos diálogos. Depois passaram a
colocar em dúvida. Mais tarde ainda, passaram a dizer que não se lembram ou que
é impossível autenticar tais conteúdos. Dizer que as mensagens são produto de
crime não basta, porque se sabe que prova ilícita pode ser utilizada a favor do
mais débil, o réu.
Assim,
na medida em que o CPP é claro no sentido de que é suspeito (artigo 254) o juiz
que aconselha a parte e isso é causa de nulidade absoluta (aliás, sempre
alegada pela defesa do ex-presidente Lula), parece que não restará outro
caminho que o da anulação da ação penal ab ovo. O melhor conceito de
parcialidade e/ou suspeição foi do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, na
Veja:
“Quando
[o juiz] sugere a uma [das partes] que vá atrás de determinadas provas, age
como juiz de futebol que, tomado pelo ardor torcedor, ousasse um passe para o
atacante na cara do gol”.
Resta
saber o caminho que será usado para chegar a esse desiderato, questão afeta à
defesa e até mesmo, de ofício — face à nulidade absoluta — ao próprio Supremo
Tribunal Federal no caso do julgamento do Habeas Corpus pautado para a próxima
terça-feira (25/6).
O
Judiciário não pode adotar uma postura consequencialista, algo do tipo “o fato
está consumado” e/ou “que seria inviável anular uma ou mais ações penais”. Não
se negocia com nulidades. Doa a quem doer.
O
que resta(rá) de tudo isso é o efeito ex nunc. Qual é o precedente que
exsurgirá? O Direito no Brasil é DAI e DDI. A ver quem vencerá: o Direito,
representado no projeto civilizatório do devido processo legal, ou a barbárie
de “os fins justificam os meios”. Teremos que escolher.
Numa
palavra final, como bem diz o jornalista Jânio de Freitas, “os que apontaram as
condutas transgressoras da Lava Jato foram muito atacados, mas eram os que
estavam certos”.
Pois
é. Fui muito atacado. Mas estou convicto de que as centenas de páginas que
escrevi estavam corretas, mesmo que Dallagnol me considere um jurista entre
aspas...!
Enfim,
comecei e termino com Benjamin Franklin: estamos fazendo a escolha mais
importante de nossas vidas. Dela depende o futuro do Direito.
Post
scriptum: Promiscuidade é uma coisa normal?
De
tudo o que está se vendo, a coisa é pior do que se pensa. Ficamos sabendo,
depois da audiência do Senado, pela boca do ex-juiz Moro e de parlamentares
aliados, que é da tradição jurídica brasileira essa “coisa” de “comunicação
entre juiz e procuradores” e quejandos. Tradição? Disse-se a mil bocas que
“quem está lá dentro sabe como funciona”. É mesmo? Ora, há que se ter cuidado
para não confundir as coisas. Explicarei.
Um
estrangeiro, ouvindo o ministro Moro, diria que, se isso é verdade, não é séria
a Justiça brasileira. E concluirá que, se Moro está certo, os brasileiros estão
com sérios problemas. E digo eu: se tudo isso é normal, temos de estocar
alimentos.
Todavia,
na contramão, proponho que façamos um raciocínio diferente: para preservar a
honra dos juízes e membros do MP desse Brasil, quem sabe não devamos dizer:
isso não é normal. Isto é, devemos dizer que a frase “isso é normal” é ofensiva
aos magistrados brasileiros. E admitamos que, sim, Moro e Dallagnol erraram.
Isso que os dois fizeram não se confunde com os contatos diários que advogados
fazem com juízes pelo Brasil afora. Isto é, o problema está no conteúdo dos
contatos, dos diálogos. Ali está demonstrada a quebra da imparcialidade. O
ponto é esse.
Por
isso, é profundamente ofensivo aos advogados confundir o enunciado performativo
“é normal esse tipo de contato e conversação” e chamar a isso de embargos
auriculares (sic). Isso está sendo dito para confundir. Ora, advogados têm
direito de falar com juízes e membros do MP sobre seus processos. O que não é
normal é o juiz aconselhar uma das partes. Isso é que não é normal.
Essa
confusão acerca do “isso é normal” faz muito mal ao relacionamento entre
advogados e magistrados. Contatos cotidianos feitos por milhares de advogados
não podem ser “misturados” — nem contaminados — com essa relação entre Moro e
Dallagnol.
Aliás,
se “isso é normal” (sic), então que Moro apresente alguma outra mensagem
similar trocada com algum advogado, com aconselhamentos similares aos dados a
Dallagnol. Ou que se apresente uma única “notitia criminis” (aqui as aspas são
necessárias) já feita por algum juiz via WhatsApp ao MP tratando do assunto com
o próprio acusador interessado no depoimento da pessoa envolvida na tal
“notitia”. Afinal, se é “normal”... Esse é o busílis.
Por
isso, parem com esse enunciado “isso é normal”.
[1]
Aliás, o senso de humor dos brasileiros é incrível: já existe uma brincadeira
que rola nas redes sociais dizendo que, se a tese de Moro vingar, os advogados
vão querer ter o telefone pessoal do juiz (será um direito fundamental), poder
trocar uats ou Telegram com ele tratando da causa de forma bem intimista, com
direito a kkks (direito líquido e certo), pedir dicas e, melhor, receber dicas
(decorrência lógica da relação juiz-parte na nova política). Isso, é claro, sem
“comprometer a imparcialidade...”! Esse povo brasileiro...!
[2]
Aqui um parêntesis: fui promotor e procurador durante 28 anos. E a pior
“pergunta” que tinha de ouvir era: quando você será juiz? Ou até a brincadeira
infame: você é bandeirinha do juiz. Pois não é que Dallagnol reforçou esse
imaginário preconceituoso contra a função do MP? Além de tudo o que fez,
Dallagnol dará azo a um monte de piadinhas... Era o que faltava.
Lenio Luiz Streck é doutor em
Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e
Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional,
ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-jun-20/senso-incomum-nao-normal-promiscuidade-entre-juiz-parte-nao-mesmo
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