O
brasileiro é, antes de tudo, um autoritário. Depois de séculos escondendo-se
por trás da ideia de de povo aberto, diverso, tolerante, pacífico e acolhedor
—o conceito de "homem cordial", cunhado pelo historiador Sérgio
Buarque de Holanda em 1936, em Raízes do Brasil—, ele tirou a máscara da
cordialidade e revelou-se abertamente intolerante. Essa é a tese do
recém-lançado Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Companhia das Letras), livro da
historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz. Em um exercício de ir ao passado
para pensar o presente, a autora destrincha as feições do autoritarismo à brasileira,
que nasce na escravidão e nas mazelas do racismo e passa pelo patrimonialismo,
violência, corrupção e pela desigualdade de gênero, resultando na polarização
atual.
Schwarcz
observa o autoritarismo presente já no nascimento da República Brasileira. "Os
dois primeiros presidentes da nossa história foram militares que governaram em
estado de sítio", explica em seu escritório. A autora defende que essa
cultura autoritária ganhou novos tons desde as manifestações de 2013 e do
impeachment de Dilma Rousseff, que desencadearam uma grande crise
sociopolítica. "Esses fatos destamparam o caldeirão da democracia. Valores
que muitos brasileiros já tinham, mas se sentiam vexados de disseminar,
começaram a aparecer e foram totalmente avalizados pelo atual governo",
diz ela. Foi precisamente a busca de razões que explicassem a eleição de Jair
Bolsonaro que levou Schwarcz a escrever o livro.
A
revelação pela série de reportagens publicadas por The Intercept, no domingo,
de que o então juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, e o
procurador da Deltan Dallagnol trocavam mensagens controversas sobre o
andamento da Operação Lava Jato é, de acordo com Schwarz, o mais recente
capítulo do autoritarismo à brasileira. "Esse episódio confirma a ideia de
judicradura ou a ditadura do Judiciário, quer dizer, de um Judiciário que
cumpre com sua liturgia, mas que cresceu de modo a não equiparar-se com os
outros poderes. É um Judiciário que perde a medida do seu poder e põe em
questão a prática da equanimidade".
A
historiadora e antropóloga também relaciona o episódios com outros ismos muito
presentes na cultura e na história brasileira. O teor das conversas vazadas
evidencia a atualidade do autoritarismo e do patrimonialismo no Brasil.
Juntamente com a corrupção, seriam os grandes inimigos da República no país.
A
subversão da "coisa pública"
Já
dizia o historiador José Murilo de Carvalho que "nossa República nunca foi
republicana". Schwarcz concorda com ele, ao lembrar que a res pública —a
coisa pública ou o bem comum— deveria opor-se aos interesses privados. Mas, no
Brasil, observa, nunca foi assim.
"O patrimonialismo é resultado da relação viciada que se estabelece
entre a sociedade e o Estado. É o entendimento, equivocado, de que o Estado é
bem pessoal, 'patrimônio' de quem detém o poder. O que vimos ocorrer desde
domingo [9], com o vazamento de informações sobre Sergio Moro, se chama
patrimonialismo. O uso do Judiciário para causas particulares, como forma de
vingança e de impedimento à que a democracia siga seu curso", afirma
Schwarz.
A
autora também vê esse uso do poder para interesses particulares no Governo
Bolsonaro (apesar de não citar diretamente o presidente no livro), que, segunda
ela, tem características populistas e autoritárias similares aos governos de Donald
Trump, nos Estados Unidos, de Viktor Orbán, na Hungria, de Rodrigo Duterte em
Filipinas, ou de Nicolás Maduro, na Venezuela. "São governos que têm uma
compreensão muito restrita da democracia. Propagam a ideia de que democracia se
resume a ganhar eleição".
No
caso do atual Executivo brasileiro, Schwarz destaca o personalismo, a figura
forte do Bolsonaro como "salvador da pátria", como traço autoritário.
"É essa coisa de 'eu sou o poço da verdade'. Basta ver que a primeira
manifestação de apoio ao presidente foi contra o Congresso e contra o Supremo,
ou seja, a ideia é do Governo é 'eu não preciso dos outros poderes, eu sou o
poder'. É um governo que não sabe governar, que continua com falas de campanha,
que não consegue ser propositivo e que não pratica o que é, na minha opinião, a
melhor política: a arte de construir consensos. Ao contrário, ele [Jair
Bolsonaro] vai cada vez mais apostando na polarização dos afetos", diz.
Schwarcz
também menciona a constante histórica que permitiu que diversas famílias se
perpetuassem na vida política do país. "Isso de governar pela parentela é
um costume aceito no Brasil. Mas agora temos um presidente e três de seus
filhos que foram eleitos para outros cargos tomando decisões em Brasília. Houve
um recrudescimento da bancada dos parentes, e os Bolsonaro exacerbam esse
modelo de familismo muito vigente no país", critica.
Ela
pondera, no entanto, que o autoritarismo, pelo menos no Brasil, não se apega a
ideologias. "Ele também cabe na esquerda", afirma. O capítulo sobre corrupção
—o maior do livro— está quase inteiramente dedicado ao caso do Mensalão
[escândalo de compra de votos de parlamentares no Congresso durante o Governo
Lula], à Operação Lava Jato e o papel do PT nela. "A polarização que
vivemos hoje é consequência disso. Um lado só se radicaliza se o outro se
radicalizar também. É com isso que os partidos de esquerda ou progressistas têm
que lidar hoje".
Apesar
de interpretar o Mensalão como uma tentativa de perpetuação no poder, Schwarcz
não considera os governos progressistas autoritários. "Tanto os governos
do PT quanto do PSDB estavam muito preocupados em ampliar a educação, em
fomentar a inclusão, não afastaram da sua pauta a questão das minorias que
estavam ascendendo. A corrupção virou uma máquina de governar, mas a questão do
autoritarismo é de outra ordem. O governo atual não tem nenhum apego à questão
das minorias, não tem uma agenda progressista, a favor da diminuição das
desigualdades, e deu provas de que não tem vocação nem vontade política de
batalhar pela educação, a única coisa que pode desarmar o gatilho da
desigualdade e da exclusão social", argumenta.
Cicatrizes
históricas e a "utopia" da Constituição de 1988
Em
Sobre o autoritarismo brasileiro, Schwarcz resgata várias cicatrizes históricas
que persistem como nós sem desatar no panorama atual do país. O colonialismo,
baseado em um modelo de exploração, e a experiência de colonização portuguesa
—uma coroa pequena, com poucos recursos para povoar o território e que
baseou-se no sistema latifundiário, além de configurar uma metrópole ausente da
vida social local— são responsáveis, segundo ela, pelas especificidades do
autoritarismo brasileiro. A maior e mais profunda dessas cicatrizes é, no
entanto, a escravidão. “Não é à toa que abro o livro com esse debate. Nem todos
os países de governos populistas e autoritários contaram com mão de obra
escrava como nós contamos. A escravidão virou uma linguagem entre nós e com
graves consequências. Esse é um grande nó da história brasileira, um nó que a
gente não desata e que gera esse racismo tão estrutural e institucional que
vivemos hoje”.
A
historiadora e antropóloga aponta que a Constituição de 1988 foi uma tentativa
de mitigar esses danos históricos, mas falhou em não reconhecer uma parcela da
população que não se sentiu atendida por ela. "A Constituição de 1988 é
generosa com muitos dos nossos direitos, mas falhou em alguns pontos. Um deles
foi não mencionar a situação dos militares. Outro foi não tratar dos
privilégios de uma sociedade desigual. Minha geração falhou em não ver isso, em
não ver essa parte da população que não se espelhava na utopia da
Constituição".
Para
Schwarcz, esse é um dos fatores que explicam "como os brasileiros
colocamos no poder um projeto autoritário". As soluções para romper com a
cultura de autoritarismo, afirma, passam pelo fortalecimento das instituições e
pela educação. Mas não há garantias.
"História não é que nem bula de remédio. A tristeza da História é
que, muitas vezes, em vez de irmos para frente, voltamos atrás", diz.
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/05/cultura/1559759225_896804.html?id_externo_rsoc=TW_BR_CM&hootPostID=901d8524f11be767ba147be43ce4143b
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