Meu
Brasil!
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil”
Neste
domingo (31/3), data em que se completam 55 anos do início da ditadura militar
brasileira, essa canção emblemática nos remonta a um dos aspectos mais cruéis
desse período, e que não pode ser esquecido pela população e pelos juristas,
sobretudo os que militam com o Direito das Famílias: a ditadura apartou,
entristeceu, angustiou e, nos casos mais graves, destroçou inúmeras entidades
familiares. Há quem diga, inclusive, que a Clarisse referenciada na música que
epigrafa esse texto é a mulher de Vladimir Herzog, morto nos porões do
DOI-Codi, em 1975, e cuja causa mortis o poder público, durante mais de 30
anos, insistiu ter sido suicídio (o atestado de óbito do jornalista somente foi
retificado em 2013).
Os
versos em destaque fazem parte de O Bêbado e o Equilibrista, obra-prima do
carioca Aldir Blanc e do mineiro João Bosco, lançada por Elis Regina em 1979, e
que logo passou a ser chamada de “O Hino da Anistia”, por ter estimulado muitas
pessoas a comparecerem aos comícios pelo fim do regime de exceção que se
instaurara no Brasil desde 31 de março de 1964.
Segundo
conta Aldir Blanc, embora a inspiração inicial da melodia criada por João fosse
homenagear Charles Chaplin, morto dois anos antes, a letra surgiu pela comoção
que lhe causou um encontro com o cartunista Henfil, ocasião na qual percebeu
que o mesmo não conseguia tratar de outro tema que não fosse a saudade do
irmão, o sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, àquela altura exilado no
México.
É
fato que cada pessoa presa, torturada, assediada, assinada, desaparecida ou
exilada pelo regime era filha/o, neta/o, irmã/o, sobrinha/o, tia/o, mãe, pai,
mulher ou marido de alguém. Inúmeras famílias, ao revés de tuteladas pelo
Estado, tiveram suas trajetórias afetivas dolorosamente interrompidas pela
brutalidade da repressão que dominou o país e que, como revela o relatório da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), consistiu numa “perseguição sistemática e
generalizada à população identificada como opositora política ao regime
ditatorial de 1964 a 1985”.
Muitas
mães não tiveram sequer os corpos dos seus filhos para enterrar. Há filhos que
cresceram sem o nome dos pais na certidão, pois estes desapareceram durante o
regime, enquanto suas mães ainda os gestavam. Outros, como Lygia, filha do
diplomata José Jobim, batalharam por longos anos para retificar as certidões de
óbitos de seus pais, para que lá constasse a real causa das suas mortes: não
acidentes ou suicídios, mas torturas e assassinatos.
Há
casos mais conhecidos, como a da estilista Zuzu Angel, que por não desistir de
lutar pela verdade sobre a tortura e assassinato de seu filho, Stuart, bem como
para tentar recuperar seu corpo, pagou com a própria vida, segundo conclusão da
CNV, por essa impertinente resistência. A mulher de Stuart, Sonia de Moraes
Angel, também foi assassinada.
Em
outro caso celebre, o jornalista Rubens Paiva, deputado federal que teve seu
mandato cassado, foi preso e assassinado nos porões do DOI-Codi, enquanto sua
mulher, Eunice, e sua filha, Eliana, também estavam presas. Eliana tinha apenas
15 anos e relata ter ficado encapuzada durante quase todo o período de seu
encarceramento, além de ter sido ameaçada e de ter tido os seus seios
apertados. O corpo de Rubens Paiva nunca foi encontrado.
Porém,
talvez nada evidencie mais fortemente a violação de tantas famílias do que o
tratamento conferido a algumas filhas e filhos de prisioneiros e mulheres
gestantes. Crianças eram levadas a acompanhar as sessões de tortura dos pais,
ou o resultados destas, como tentativa de minar a resistência dos presos. O
mais jovem torturado pelo regime militar brasileiro, Carlos Alexandre Azevedo,
filho de Dermi Azevedo, cientista político e jornalista, e de Darcy Andozia,
pedagoga, tinha 1 ano e 8 meses quando foi preso, tomou um soco no rosto e,
segundo relatos, foi torturado com choques elétricos para pressionar seus pais
a confessarem supostos crimes de subversão. Carlos, posteriormente
diagnosticado como portador do transtorno de fobia social, suicidou-se aos 40
anos.
Quanto
às presas gestantes, muitas delas sofreram abortos, em função das variadas
torturas a que foram submetidas. Outras deram à luz no cárcere e tiveram seus
filhos sequestrados ou ameaçados de agressões físicas, como socos e
queimaduras. Rose Nogueira e Suely Caldas, ambas jornalistas, relatam terem
sofrido aplicações de injeções para secar o leite oriundos de seus partos.
Algumas mulheres ficaram estéreis, em função das torturas. E muitas dessas mães
sofreram abuso sexual e estupro no cárcere.
Destarte,
os 55 anos recém-completados deixam em relevo duas questões fundamentais:
1)
a importância, para o Estado Democrático de Direito, da proteção garantida à
família, como base da sociedade, pela Constituição Cidadã de 1988, em seu
artigo 226. Essa garantia desdobrou-se em dispositivos infraconstitucionais
importantes, como o artigo 1.513 do Código Civil, o qual assevera que “é defeso
a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de
vida instituída pela família”. Ademais, somos signatários do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em vigor no pais desde 1992,
que determina, em seu artigo 17, que “ninguém poderá ser objeto de ingerências
arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou
em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação”;
2)
a incompatibilidade dessa ampla proteção com qualquer tipo de exaltação ou
celebração a um período histórico que massacrou pessoas, arrancou-lhes a dignidade
e esfacelou suas famílias.
Que
essa dor assim pungente, como apregoa a canção, “não há de ser inutilmente” e
nos sirva como constante alerta da necessidade de seguir defendendo
aguerridamente a democracia, fora da qual nem a pessoa humana nem suas relações
familiares encontram efetiva tutela.
Fernanda Carvalho Leão
Barretto é advogada, mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela
Universidade Católica do Salvador (UCSal), conselheira da OAB-BA e membro da
diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).
Revista Consultor
Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário