Alguém
pode balbuciar que jamais cometerá crimes, mas ninguém tem a certeza de que
jamais será acusado de um. Sobre todos os indivíduos pesa a possibilidade da
suspeição em algum momento da vida.
Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt, estudiosos da Universidade Harvard, pesquisaram
sobre o colapso de regimes democráticos pela Europa e América do Sul nas
últimas décadas. Em seu festejado best-seller Como as Democracias Morrem,
apontam quatro indicadores principais do desenvolvimento de comportamentos
autoritários no seio de uma sociedade: a) rejeição pelos políticos das regras
democráticas do jogo; b) negação da legitimidade dos oponentes políticos; c)
tolerância ou encorajamento à violência; e d) propensão a restringir liberdades
civis de oponentes, inclusive da mídia[1].
Concluíram
os autores que, caso determinado país esteja sob o jugo de apenas um dos quatro
sintomas, se pode afirmar que existem riscos relevantes para o sistema
democrático.
No
Brasil, há muito o risco da degradação da democracia é alimentado. Exemplo
disso é a pública normalização de espetáculos de violência por órgãos do
próprio Estado aos presos antes até mesmo que se alicercem contra eles uma
sentença penal condenatória com trânsito em julgado. Instaurou-se um permanente
cenário de tolerância e encorajamento à violência a partir do aviltamento de
direitos fundamentais de determinada parcela de cidadãos presos.
O
que se debate neste apertado ensaio é justamente o ritual de apresentação da
imagem e voz da pessoa presa às lentes e microfones da imprensa, como troféus,
muitas vezes com uniforme do sistema prisional, com ostentação de armas e logos
corporativos dos órgãos policiais, em cerimônia que passou a ser prestigiada
com a difusão até mesmo pelos canais de comunicação especializados neste tipo
de jornalismo.
Esse
ritual degradante de execração coletiva do ser humano que hoje é massivamente
consumido pelas telas e autofalantes parece remontar aos autos de fé promovidos
pelo Tribunal do Santo Ofício nas praças públicas do medievo dominadas pela
Inquisição[2].
Em
uma sociedade pautada pelo medo, a sensação de insegurança não resulta apenas
do que se vivencia, mas também do que se ouve, se fala, se lê, se presume, se
imagina e se informa sobre a criminalidade[3]. A prática inconstitucional e
normalizada de apresentar indivíduos no momento em que presos em flagrante,
despidos de sua humanidade, ajuda a reforçar o pânico nas grandes cidades,
aumenta a espiral de violência e, apesar de recorrente, precisa de reações das
instituições e órgãos comprometidos com as linhas protetivas de direitos
existentes na Constituição Federal de 1988.
Conforme
ponderam Tulio Vianna e Jamilla Sarkis, para além de informar dados e a
ocorrência de fatos, o sensacionalismo tem por finalidade produzir e estimular
reações passionais nos telespectadores.
Sob
o amparo de uma suposta autoridade intelectual e social do grande veículo de
comunicação e de seus âncoras, a notícia sensacionalista traz não só a voz da
verdade fática típica do jornalismo que pretende informar, “mas também de uma
verdade moral que julga de um lugar privilegiado acima do bem, do mal e até
mesmo das leis e da Constituição da República”[4].
Forma-se,
assim, a opinião de milhares de pessoas a partir de narrativas enviesadas,
capazes de construir no imaginário social a figura de inimigos sociais, por
julgamentos morais sumários ao arrepio da teleologia constitucional. Assim se
constroem parcelas de cidadãos a serem destruídos e desumanizados.
O
direito envolvido é de compreensão simples: a questão está tratada de forma
destacada na Lei de Execução Penal — previsão que se poderia considerar até
desnecessária, à vista da proteção que o texto constitucional oferece à
presunção de inocência, à imagem, à intimidade, à vedação ao tratamento
degradante e à dignidade humana —, mas ainda assim é expresso na lei o direito
do preso à proteção contra qualquer forma de sensacionalismo (artigo 41, VIII).
Também
é lição elementar que ao agente público somente é dado fazer aquilo que a lei e
a Constituição autorizem. Portanto, não há espaço no ordenamento jurídico para
produção de práticas medievais como forma de quaisquer órgãos prestarem contas
do trabalho realizado.
Diante
de uma prática que desafia o Estado de Direito, alguns tribunais do país já
foram chamados a se manifestar sobre o tema, a partir de ações civis públicas
ajuizadas por diferentes Defensorias Públicas.
Em
Minas Gerais, no bojo de ação civil pública ajuizada pela Defensoria, o
Tribunal de Justiça local concedeu parcialmente a antecipação da tutela
recursal em sede de agravo de instrumento para reconhecer a absoluta
excepcionalidade da apresentação involuntária da imagem e/ou voz de pessoas
presas pela Polícia Civil e determinar ao estado que a autoridade policial
presidente de cada investigação motive por escrito cada decisão excepcional de
apresentação de imagem/voz da pessoa presa, “de forma individual, concreta e
objetiva, indicando os aspectos fáticos e jurídicos que a embasam, quanto à
necessidade e adequação e proporcionalidade da medida em favor da administração
da justiça ou para a elucidação das investigações”. Determinou-se ainda que
cada apresentação seja comunicada à Defensoria Pública e ao Ministério Público
para que no limite de suas atribuições façam o controle da prática[5].
Em
Alagoas, iniciativa semelhante da Defensoria Pública deu ensejo à sentença
proferida pelo juízo da 17ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Maceió determinando
“a observância ao respeito à imagem do preso provisório, velando, quando
sujeito às suas autoridades, pela não exposição involuntária aos meios de
comunicação; b) a proibição de que empregados de empresas de comunicação
privada utilizem-se dos veículos públicos ou qualquer outro equipamento
estatal, quando em operação com presos provisórios, para produzir imagens e/ou
exposições involuntárias destes”[6].
Igualmente,
no Rio de Janeiro, o juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital, em sentença,
julgou procedente o pedido da Defensoria Pública para condenar o estado a
somente divulgar “o nome dos acusados, descrição dos seus atributos físicos
juntamente com o fato imputado, sem qualquer divulgação de imagem ou foto”.
Caso não opte pela divulgação nos termos anteriores, deve o agente público
“motivar a maneira clara, congruente e explícita, as razões para a exibição de
foto ou imagem involuntária, desde que o façam de maneira a não possibilitar a
imediata identificação do encarcerado provisório, salientando, sobretudo a
utilidade da exposição para a persecução penal, pré-processual e
processual”[7].
A
relevância prática desse debate no sistema de Justiça, por impor limites aos
órgãos de persecução penal do Estado, remonta não apenas à delimitação do
espaço juridicamente adequado — à vista do necessário respeito à privacidade, à
honra, à imagem e à presunção de inocência —, mas também à constatação de que o
descompasso entre a verdade jornalística e a verdade processual tem sérias
implicações para um julgamento criminal justo, ao final do processo[8]. A
proteção se realiza também no interesse do próprio julgador, que deve analisar
os casos livre de clamores indevidamente estimulados.
É
importante demonstrar que o standard inicial de ponderação deve ser a
preservação da imagem e da voz da pessoa presa, em garantia à honra e à
privacidade de alguém que é presumidamente inocente até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória. Não se alcança paz social a partir do
desrespeito aos direitos fundamentais.
E
não se diga que tal standard constitua qualquer incremento do quarto indicador
de autoritarismo, apontado por Levitsky e Ziblatt.
Isso
porque, de uma via, a apresentação da imagem/voz de uma pessoa presa não é
atividade apta a conferir densidade ao legítimo direito de informação da
população sobre a notícia de fato e sobre os trabalhos de investigação
criminal.
Além
disso, não há nenhuma mácula à atividade de imprensa nas decisões anotadas, já
que nenhuma proibição se dirigiu aos órgãos de imprensa. O que não se pode
tolerar são agentes públicos exibindo — sem respaldo constitucional — outros
cidadãos, sobretudo enquanto vigora plenamente o Estado de inocência.
Da
imagem ou da voz do custodiado apenas de forma absolutamente excepcional se pode
extrair algo relevante sobre a condução dos trabalhos policiais e judiciais,
sobre as linhas investigativas tomadas pela polícia, sobre os atos do processo
criminal ou sobre as provas produzidas etc. Todavia, ainda nos raros casos que
a justificativa existe, nunca se pode operar de forma sensacionalista.
A
apresentação da pessoa presa às lentes e microfones da mídia de massa de forma
a promover verdadeiras humilhações é o que se questiona, visto que apenas
viabiliza interesses ilegítimos no Estado de Direito: a exposição à execração
pública, a construção de uma falsa sensação de segurança e de eficiência ou,
ainda, a autopromoção corporativa com a presença de agentes encapuzados e
fortemente armados atrás de um custodiado algemado e exposto, como se de cidadão
tivesse se transformado em um troféu.
Além
de desnecessária e inadequada à concretização da liberdade de imprensa e do
direito à informação, a apresentação da imagem/voz da pessoa presa promove
nefastos efeitos sobre direitos da personalidade do custodiado.
Precisamente,
a cerimônia espetacular da mídia sobre a pessoa presa contribui para a
construção de estigmas sociais, constituindo-se em instrumento catalisador de
um processo psicológico-coletivo de rotulação do investigado ao estereótipo de
“criminoso”. O estereótipo, ao ser confirmado pela respeitabilidade
institucional da mídia, “transformar-se em desqualificação permanente da
pessoa, criando um processo de estigmatização”[9].
É
clássico o entendimento sustentado pela criminologia crítica de que esse
processo de estigmatização tem como ponto nodal a autointrojeção do estigma, a
partir da qual o próprio estigmatizado passa a se assumir como tal, numa
“profecia-que-a-si-mesma-cumpre”[10].
Ou
seja, retirando toda a humanidade do custodiado, ele recebe o tratamento e
passa a reproduzir ainda mais violência.
Para
além do vilipêndio à dignidade da pessoa pelo processo de estigmatização,
importa destacar, também, que a presunção de inocência é outro parâmetro
normativo que afasta a interpretação de que o obstar a apresentação
constituiria violação da liberdade de imprensa.
A
presunção de inocência é princípio informador do sistema social democrático,
não se restringindo a uma regra probatória e de julgamento determinada a impor
ao juiz a absolvição do réu na hipótese processual de dúvida[11].
Ela
revela também uma regra de tratamento da qual exsurge deveres a todo o poder
público e a toda sociedade, inclusive à mídia:
Mas
o princípio da inocência não se aplica exclusivamente no campo probatório, o
'in dubio pro reo’ é apenas uma de suas repercussões. A norma constitucional
estudada impõe que seja dispensado tanto ao investigado quanto ao réu
tratamento compatível com seu estado de inocente[12].
Assim,
enquanto norma de tratamento, a presunção de inocência impõe aos órgãos de
persecução penal o dever de proteger da imagem da pessoa custodiada e impõe às
instituições o dever de tratar qualquer investigado ou réu pela condição de
inocente.
Não
há, portanto, nenhum empecilho ao funcionamento regular dos órgãos de controle,
mas delimitação constitucional do seu exercício.
É
possível cumprir os deveres investigativos sem a prática de rituais medievais
de expiação pública, prova disso é que em nenhum dos locais em que foi proibida
a apresentação da imagem de custodiados se demonstrou nenhum dado minimamente
crível de que essa vedação tenha prejudicado em algum grau o nobre trabalho
policial. De outro lado, oferta-se a inúmeros acusados alguma possibilidade de
retorno a uma vida digna, independentemente do resultado da investigação e do
processo criminal.
Em
apertada síntese: a suspensão desses rituais e a proteção da dignidade humana
pelo próprio Estado possibilitam — sem risco às atividades de persecução
criminal — um desencorajamento institucionalizado da violência.
[1]
LEVITSKY. Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. trad. Renato
Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro: Zagar, 2018. p. 70.
[2]
Sobre os espetáculos medievais dos autos de fé, consultar: NAZÁRIO, Luiz. Autos
de fé como espetáculos de massa. São Paulo: Humanitas-fapesp, 2005.
[3]
GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: a distorção da
criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.98.
[4]
VIANNA, Túlio; SARKIS, Jamilla. Execrando suspeitos para atrair audiência: o
uso de concessões públicas de TV para a prática de violações ao direito
constitucional à imagem In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre
(Coords.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica
e contribuições. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
[5]
Autos 5087042-63.2018.8.13.0024 – 2ª Vara de Fazenda Pública e Autarquias;
decisão proferida no Agravo de Instrumento 1.0000.18.108797-4/001.
[6]
Autos 0706323-53.2017.8.02.0001. 17ª Vara da Fazenda Pública de Maceió.
[7]
Autos 0131366-09.2013.8.19.0001 – 1ª Vara da Fazenda da Fazenda Pública do Rio
de Janeiro.
[8]
SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008.
[9]
BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas. Um estudo sobre os
preconceitos. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 37.
[10]
BECKER, Howard. Outsiders. Studies in the sociology of deviance. New York: Free
Press, 1963. p. 34.
[11]
Sobre a regra de tratamento do princípio da presunção de inocência ver:
BELTRÁN, Jordi Ferrer. Uma concepção minimalista e garantista da presunção de
inocência. (In) MARTÍ MARMOL, Josep Lluís; MORESO, Josep Joan (orgs).
Contribuiciones a la filosofia del derecho, Trad Janaína Matida. Madrid:
Marcial Pons, 2012.
[12]
SCHREIBER, Simone. Op. Cit., p. 193.
Romulo
Luis Veloso de Carvalho é defensor público de Minas Gerais, diretor da Escola
Superior da Defensoria Pública de Minas Gerais e mestre em Direito Penal da PUC
Minas.
Paulo
Henrique Drummond Monteiro é defensor público de Minas Gerais, membro da
Comissão de Execução Penal do Colégio de Defensores Públicos-Gerais (Condege) e
da Câmara de Estudos em Execução Penal da Defensoria Pública de Minas Gerais.
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