Peça 1 – sobre o conceito de
democracia
Um
dos pressupostos básicos de uma democracia é o espaço que se confere à
oposição. A compreensão de que o partido de oposição tem o direito de existir,
lançar candidatos, defender propostas e se revezar no poder é o pressuposto
básico de qualquer democracia que se pretenda séria.
Quando
se trata a oposição como inimigo, quando é submetida ao chamado direito penal
do inimigo, criminalizada e impedida de competir politicamente, tem-se,
objetivamente, uma ditadura.
Vamos
tentar, primeiro, entender como o jogo político brasileiro cedeu à mais
completa e ampla selvageria. E, depois, avaliar se o regime atual é de
democracia ou de ditadura.
Peça 2 – o efeito Orloff no
Brasil
No
já clássico “Como as democracias morrem” (Steven Levistky), há um histórico
sobre o processo político, nos Estados Unidos, que resultou na disputa política
selvagem levando ao fator Donald Trump. É, em tudo, similar ao que está
ocorrendo no Brasil. É um efeito Orloff.
A emancipação do eleitor de
baixa renda
Durante
quase todo o período da história política norte-americana, houve uma
convivência civilizada entre os Partidos Democrata e Republicano. Esse pacto se
dava à custa da supressão dos direitos políticos dos negros e latinos do sul,
garantindo uma ala conservadora do Partido Democrata no sul convivendo com a
ala conservadora do Partido Republicano.
Essa
paz de brancos começou a ruir com a emancipação negra e a imigração. Os novos
eleitores passaram a apoiar desproporcionalmente o Partido Democrata. Os
democratas não-brancos representavam 7% do partido em 1950. Em 2012 já eram
44%, enquanto os eleitores brancos representavam quase 90% do Partido
Republicano.
Foi
um dos motivos da quebra de regras de civilidade na política, com a
radicalização cada vez maior da maioria branca.
Os evangélicos e a questão
moral
Enquanto
os democratas se tornavam cada vez mais um partido das minorias étnicas, o
Partido Republicano ia radicalizando, como o partido do americano branco. A
radicalização aumentou com a crescente participação das igrejas evangélicas na
política a partir dos anos 70, em reação à decisão da Suprema Corte no caso Roe
contra Wade, legalizando o aborto.
A
partir da eleição de Ronald Reagan, em 1980, o Partido Republicano adotou
posições crescentemente pró-evangélicas, com oposição do aborto, apoio ao
direito de oração nas escolas públicas, oposição ao casamento gay.
Em
2016, 76% dos evangélicos brancos se identificavam com os republicanos,
enquanto os eleitores democratas se tornavam mais seculares. A porcentagem de
democratas brancos que frequentavam igrejas caiu de 59% nos anos 1960 para
menos de 30% nos anos 2.000.
A questão social e a perda de
status
Um
dos pontos que abordei bastante, para tentar explicar a radicalização da mídia
brasileira pós-2005 - e que incluí em O Caso de Veja - era a perda de status
social da classe média, com a ascensão das classes de menor renda.
O
livro descreve o mesmo fenômeno nos Estados Unidos, citando o ensaio do
historiador Richard Hofstadter em 1964, em “The Paranoid Style in American
Politics”. Ele denominava de “ansiedade de status”: quando o status, a identidade e o sentido de
pertencimento de grupos sociais são percebidos como estando sob ameaça, induz a
um estilo de política que é “excitável demais, desconfiado demais, agressivo,
pretensioso e apocalíptico demais”. A luta contra o status declinante da
maioria foi o combustível que passou a abastecer a animosidade da direita
americana até resultar no Tea Party e na direita branca. Nada diferente do que
ocorreria depois no Brasil.
Diz
o livro: “Políticos republicanos de Newt Gingrich a Donald Trump aprenderam
que, numa sociedade polarizada, tratar rivais como inimigos pode ser útil – e
que promover a política como guerra pode apelar àqueles que receiam ter muito a
perder”.
Nos
Estados Unidos e no Brasil, a consequência foi a erosão da confiança e das
grades de proteção que garantiam a democracia contra lutas sectárias mortais.
A ascensão da mídia de direita
No
Brasil, de 2005 até no pós-impeachment, a mídia brasileira foi majoritariamente
de direita, explorando o novo mercado que se abria e atacando todos que não
concordassem com suas teses, repetindo o padrão Rupert Murdoch e sua Fox News.
Segundo
o livro, “a ascensão da mídia de direita (nos Estados Unidos) também afetou os
mandatários republicanos. Durante a administração Obama, os comentaristas da
Fox News e personalidades radiofônicas de direita adotaram quase todos uma
posição “sem concessões”, atacando maliciosamente qualquer político republicano
que rompesse com a linha do partido. E, com isso, jogando o partido cada vez
mais para a direita, em um fenômeno que, no Brasil, produziu os mesmos efeitos
sobre o PSDB.
Todos
esses fatores explicam a radicalização política brasileira que resultou no
bolsonarismo – um fenômeno muito mais duradouro e independente de líderes do
que a figura pública de Bolsonaro.
Mas
o que explicaria a arrancada final, de aniquilamento de um partido político
relevante, conduzido por pessoas com histórico democrata e de respeito aos
direitos humanos?
Peça 3 – os atores no golpe
final na democracia
Há
sinais cada vez mais nítidos de que está a caminho uma tentativa de
inviabilização do PT como partido político. Esses sinais já chegaram a
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Seria o golpe final na etapa de
democracia mitigada no país.
As
instituições brasileiras padecem, hoje em dia, da síndrome da ordem unida.
Percebendo
como inevitável o advento do poder militar, tratam de se antecipar ao que
julgam que os militares pensam. Pagam o óbolo para a travessia do Egeu rumo ao
novo inferno que se avizinha.
Hoje
em dia, todas as instituições – do STF (Supremo Tribunal Federal) à PGR (Procuradoria
Geral da República) – praticam as arbitrariedades que julgam ser do gosto do
poder militar. Não precisa nem ordenar.
No
caso do STF, houve a decisão estapafúrdia do presidente Dias Toffolli, de
colocar um militar como assessor, para orientá-lo sobre as suscetibilidades do
poder militar.
No
caso da PGR, a atuação recente da Procuradora Raquel Dodge transforma seu
antecessor, Rodrigo Janot, em um mero aprendiz no desmonte das garantias
jurídicas. As demagogias punitivistas de Luis Roberto Barroso e Luiz Edson
Fachin seguem essa receita do seguro pessoal.
As
três peças centrais atuais desse golpe final contra a democracia são a
Procuradora Geral da República Raquel Dodge, o vice procurador e subprocurador
eleitoral Humberto Jacques de Medeiros, e, como representante da Lava Jato, o
juiz brasiliense Vallisney de Souza Oliveira.
Dodge, Humberto e o TSE
Raquel
Dodge tem avançado em duas frentes: as ações espetaculosas contra políticos e
as investidas no âmbito do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) – essa última
frente sob a responsabilidade de Humberto Medeiros.
Medeiros
considerou normal a movimentação no WhastApp – dois dias antes da própria
empresa admitir as manipulações. Depois, revelou tardiamente as medidas
sugeridas pelo próprio WhatsApp para combater as fakenews. Recentemente,
instruiu a PGR a dar parecer favorável às contas de Bolsonaro.
Ao
mesmo tempo, ambos – Dodge e Medeiros – denunciaram Lula pela campanha
eleitoral, exigindo a restituição de R$ 14,5 milhões gastos no período em que
Lula era candidato.
O
MPF (Ministério Público Federal) é o maior defensor da cooperação
internacional. Tem sido o órgão de fato na gestão das parcerias, atropelando o
próprio Ministério da Justiça. Tem se manifestado em inúmeras ocasiões em
defesa dos tribunais internacionais.
Dodge
preferiu atropelar todo esse histórico, inclusive sua própria história, de
egressa da área dos direitos dos cidadão, minimizar o parecer da missão
especial da ONU – considerando o direito de Lula se candidatar -, a expectativa
que cercou, até o último momento, a autorização para Lula se candidatar ou não,
e tratar toda uma estratégia eminentemente política como burla, exigindo a
devolução dos gastos de campanha, tudo com uma retórica típica de comentarista
da Jovem Pan.
A Lava Jato e a organização
criminosa
Na
outra frente, há o fator Antonio Palocci. Os procuradores da Lava Jato não
aceitaram a delação de Palocci - coincidentemente logo após ele sugerir que
poderia incluir instituições financeiras e órgãos de mídia. Alegou-se que não
apresentara provas.
De
repente, a delação ressurge pelas mãos da Polícia Federal, focando
exclusivamente os governos Lula e Dilma. E serve de base para o juiz Vallisney
de Souza Oliveira aceitar a acusação de organização criminosa formulado pelo
procurador, com base na delação não aceita pelo MPF.
O
que está por trás desse jogo de sombras? Por que a Lava Jato não aceita uma
delação que traz para a primeira cena novos personagens – mercado e mídia – e,
logo depois, a delação ressurge pelas mãos da PF em cima exclusivamente da
receita usual da Lava Jato?
Uma
das narrativas possíveis é a seguinte.
Provavelmente Palocci apresentou um
documento inicial sobre os termos da delação oferecida, incluindo mercado
financeiro e mídia.
Por razões políticas, questões táticas ou
motivações obscuras, a Lava Jato não quis mexer com mercado e mídia. Ao mesmo
tempo, não poderia ignorar os termos iniciais propostos por Palocci. Ou seja,
qualquer delação de Palocci para o MPF teria que necessariamente incluir as
propostas iniciais apresentadas.
A saída dos procuradores, então, foi
recusar a delação proposta por Palocci, zerar os seus termos e refazê-la via
Polícia Federal, em cima do mesmo conteúdo de todos os demais delatores.
Quando
se sair desse período de ilegalidades e lusco-fuscos, será possível saber as
razões objetivas desse jogo Palocci-MPF-PF.
Peça 4 – o estado policial
Hoje,
o filho mais extravagante de Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, afirmou no Twitter
que as políticas de atenção aos viciados em crack – da gestão Fernando Haddad –
apenas ajudaram a aumentar os preços do crack no mercado paulista. A afirmação
estapafúrdia foi “curtida” pelo general Alberto Heleno.
Episódios
desse tipo vão consolidando o que se espera do governo Bolsonaro no plano moral
e ideológico. Será o tema exclusivo da prole Bolsonaro, o game para ele se
divertir e fingir que governa.
Por
outro lado, a indicação do almirante-de-esquadra Bento Costa Lima Leite de
Albuquerque Júnior para Ministro das Minas e Energia mostra a consolidação dos
militares como eixo racional do governo Bolsonaro. Albuquerque Junior é diretor
geral de desenvolvimento nuclear e tecnológico da Marinha, faz parte do
conselho de administração da Nuclebrás, e participou de um dos maiores feitos
tecnológicos brasileiros: o desenvolvimento nuclear, especialmente o
enriquecimento do urânio.
Como
se viu no artigo “Xadrez da nova corte e as fragilidades de Bolsonaro”, o
núcleo dos financiadores de campanha - o advogado Gustavo Bebiano, o dono do
PSL, Luciano Bivar, e o lobista carioca Paulo Marinho – planejavam controlar os
principais contratos do governo. Um dos campos mais visados era justamente nas
Minas e Energia, onde pretendiam emplacar Paulo Pedrosa, executivo
controvertido, ex-Secretário Executivo do Ministério de Minas e Energia.
Além
da intenção de privatizar a Eletrobras por uma ninharia, o nome de Pedrosa
despertou desconfianças em vários setores empresariais, dos distribuidores de
gás aos de combustíveis.
A
indicação de Albuquerque Júnior mostra que o grupo militar está conseguindo
estender redes de proteção para impedir as grandes tacadas contra ativos
públicos.
Por
outro lado, o vazamento de uma operação da Polícia Federal contra o futuro
superministro Paulo Guedes, demonstra claramente que o estamento
jurídico-militar – representado pelo futuro Ministro da Justiça Sérgio Moro –
tentará manter todo o Ministério Bolsonaro sob rédea curta.
Fica-se assim, então:
O núcleo militar se consolidando nas áreas
críticas e ligadas à infraestrutura, conferindo a racionalidade capaz de dar
sobrevida ao governo, mesmo com o besteirol do núcleo presidencial, e criando
blindagem contra os grandes negócios que estavam sendo planejados.
Ao grupo bolsonariano – família, mais
ministros medievais – será entregue o playground das disputas morais e
ideológicas.
O núcleo jurídico-militar se consolidará em
torno de Sérgio Moro, instituindo de forma profissional a república
policialesca e se tornando um poder autônomo, acima de Bolsonaro. Sob os
holofotes, é capaz que a mística de Moro se esfumace rapidamente.
STF, PGR, os Barroso, Dodge e assemelhados
antecipando-se às ordens militares, radicalizando para se credenciarem sob as
asas de Sérgio Moro e, com seus maus exemplos, escancarando as portas do
arbítrio na ponta.
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