Documentos
inéditos, guardados há meio século nos arquivos do Superior Tribunal Militar
(STM), jogam luzes no cenário que levou ao recrudescimento da ditadura militar,
com a edição do AI-5 (Ato Institucional número 5) em dezembro de 1968.
Depoimentos de personagens, relatórios oficiais e uma infinidade de papéis
anexados a processos que somam cerca de 10 mil páginas, ao qual a Pública teve
acesso, demonstram que o AI-5 fez parte de um plano para alongar a ditadura com
atentados a bomba em série, preparados no final de 1967 e executados até agosto
do ano seguinte por uma seita esotérica, paramilitar e de extrema direita.
Até
esse momento, episódios de ação armada da esquerda, que também ocorreram, eram
apontados como causa para a decisão dos militares de endurecer o regime.
Comandadas
por um líder messiânico a serviço da linha dura do governo militar, as ações
terroristas da direita, que chegaram a ser atribuídas, equivocadamente, às
organizações de esquerda, segundo apontam as investigações, tiveram como
estratégia aquecer o ambiente como preparação do “golpe dentro do golpe”, o que
daria ao regime uma longevidade de mais 17 anos.
Na
cadeia de comando do grupo se destacam um general da reserva Paulo Trajano da
Silva, que se dizia amigo pessoal do então presidente-ditador Artur da Costa e
Silva, e, na linha de frente do plano, um complexo personagem, Aladino Félix,
conhecido como Sábado Dinotos, líder da seita, mentor e também autor dos
atentados.
Formado
por 14 policiais da antiga Força Pública (como era chamada à época a Polícia
Militar de São Paulo), todos seguidores fanáticos de Aladino Félix, o grupo
executou 14 atentados a bomba, furtou dinamites de pedreiras e armas da própria
corporação, além de praticar pelo menos um assalto a banco, plenamente
esclarecido. Foram os pioneiros do terrorismo, e os responsáveis pela maioria
das ações terroristas registradas no período – um total de 17 das 32
contabilizadas pelos órgãos policiais.
Primeiros
atentados foram da direita
A
evidência de que foi a direita quem tomou a frente nas ações que serviram de
pretexto para o fechamento do regime aparece pela primeira vez num relatório do
delegado Sidney Benedito de Alcântara, assistente do Departamento de Ordem
Política e Social (Dops), sobre o inquérito em que a polícia esclarece os
crimes a partir de prisões ocorridas em meados de agosto de 1968. Com data de
18 de dezembro, cinco dias depois da edição do AI-5, o delegado afirma que os
atentados da direita “começaram bem antes do atual terrorismo de esquerda”,
numa referência ao início da fase mais acirrada dos conflitos armados que
marcaram a fase mais dura da repressão política.
Pela
cronologia das investigações, os paramilitares começam furtando dinamites, no
final de dezembro de 1967, armas no Quartel-General (QG) da Força Pública em 16
de janeiro de 1968, e executam explosões de bombas entre 10 de abril até 19 de
agosto, com atentados em série, o último deles dois dias antes de o grupo ser
desbaratado.
Os
alvos principais dos atentados, cuja autoria o grupo de Aladino Félix
assumiria, foram justamente os órgãos que depois centralizariam a repressão
contra a esquerda em São Paulo: o II Exército, cujo QG ainda funcionava na rua
Conselheiro Crispiniano, o prédio do Dops, instalado então no largo General
Osório, e o QG da Força Pública, na praça Júlio Prestes, todos na região
central.
O
grupo explodiu também bombas na Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), no
oleoduto de Utinga, em prédios onde funcionavam os setores de alistamento da PM
(era Força Pública) e de varas criminais da capital (Lapa e Santana) e em
pontilhões e trilhos que davam acesso à estrada de ferro que ligava o litoral e
os subúrbios da região metropolitana ao centro da capital.
As
ações de esquerda, porém, que mais tarde se alternariam com as da direita, se
iniciaram apenas em 19 de março de 1968, com a explosão de uma bomba que feriu
três estudantes na biblioteca do consulado dos Estados Unidos, no Conjunto
Nacional, na avenida Paulista. O atentado mais grave, que matou o soldado Mário
Kozel, sentinela do QG do II Exército, já funcionando no Parque Ibirapuera, só
ocorreria em 26 de junho do mesmo ano.
O
general Silvio Corrêa de Andrade, chefão da Polícia Federal em São Paulo,
chegou a sustentar à época, em entrevistas, que o governo não tinha dúvidas
sobre quem estaria por trás de todos os atentados. “Sabemos de onde partiu o
golpe: foram os homens da esquerda. Mas acabaremos por agarrá-los”, disse ele.
O
mesmo general se mostraria surpreso quando o grupo de Aladino Félix acabou se
revelando através de uma investigação criminal de rotina, à revelia dos órgãos
de informação do governo federal, que mirava apenas descobrir os autores do
roubo a uma agência do Banco Mercantil e Industrial (BMI) de Perus, ocorrido no
dia 1º de agosto de 1968.
Maconheiros
e malandros
O
delegado Ruy Prado de Francischi, lotado na 40ª DP, em Vila Santa Maria, na
zona norte, rastreando os passos de “maconheiros e malandros”, conforme consta
no relatório do Dops, recolheu informes sobre a quadrilha que roubou o BMI. O
delegado descobriu que os assaltantes, com os rostos cobertos por lenços
(estilo copiado dos filmes de faroeste, então a coqueluche de Hollywood),
haviam rendido o vigia e funcionários da agência com armas furtadas do QG da
Força Pública, em 16 de janeiro, de onde haviam sido levados uma metralhadora
INA, três pistolas Walther e 13 revólveres Taurus.
Identificados,
presos e conduzidos ao xadrez do Deic, os quatro assaltantes, todos já fichados
à época por crimes comuns, depois de intensas sessões de tortura, contaram que
o mentor do roubo havia sido o soldado da Força Pública Jessé Cândido de
Moraes, o segundo homem na hierarquia do grupo. Preso no dia 21 de agosto, e
também submetido a variados tipos de sevícias, o policial citou, pela primeira
vez, o nome de Aladino Félix como um dos destinatários do dinheiro roubado.
Autor
de livros sobre ufologia e de profecias bíblicas, místico venerado por um
séquito, Aladino Félix tinha servido como militar na Segunda Guerra e era
reconhecido por relevantes serviços prestados ao golpe de 1964, além de manter
contatos com autoridades do regime militar. Como um delator de luxo, fornecia informações
sobre as ações das organizações de esquerda e supostas conspirações contra o
governo envolvendo oficiais da Força Pública.
Detido
um dia depois de Jessé, em 22 de agosto, Aladino Félix foi levado para o Deic.
Lá, também torturado, conforme atestaria um laudo pericial da própria polícia,
mas longe da influência das autoridades federais, descreveu em detalhes, num
manuscrito de 25 páginas em folhas de caderno espiral, todos os atos praticados
por seu grupo nos oito meses que antecederam sua prisão. Aladino Félix,
abandonado pelo governo, que perdeu o controle sobre sua prisão, passa a contar
por que organizou o grupo. De acordo com ele, a motivação básica das ações era
levar o regime a assumir medidas ditatoriais agudas. Num dos trechos do manuscrito,
Aladino Félix afirma que recebia ordens da Casa Militar do Palácio do Planalto,
chefiada à época pelo general Jayme Portella, e de fontes do Ministério da
Justiça através da Polícia Federal.
Poderia
ser apenas bravata, mas um dos papéis apreendidos em seu escritório, no 21º
andar do edifício Martinelli, não deixa dúvida sobre as relações de Aladino
Félix/Dinotos com o escritório central da Polícia Federal (PF), em Brasília:
“Prezado
senhor Dinotos,
Recebi
sua carta e desde já aceite meus agradecimentos pelas informações nela
contidas.
Encaminhei
imediatamente cópia das informações ao meu Diretor, tendo ele ficado também
impressionado e levará o assunto às autoridades superiores.
Esperando
contar com a valiosa cooperação que o senhor vem prestando, aguardo novas
notícias”.
A
carta, datilografada numa folha com o brasão da República e timbres do
Ministério da Justiça e Polícia Federal, é assinada pelo inspetor Firmiano
Pacheco, com data de 8 de maio de 1968, portanto três meses antes de Aladino
Félix e seu grupo serem presos.
A
onda de atentados era de pleno conhecimento do governo, que tinha consciência,
segundo Aladino Félix, de que o regime entrara numa fase de desgaste e estava
em meio a uma forte crise quatro anos depois do golpe. “Brasília queria que
nossas ações continuassem até dezembro de 1968 ou janeiro de 1969”, escreve no
manuscrito, entregue à polícia em 27 de setembro de 1968. Todos os integrantes
de seu grupo, ouvidos em inquéritos civis e militares, reafirmariam que a
motivação era levar o regime a editar medidas de exceção.
Aladino
Félix sustenta que, diante de pressões que só aumentavam, o governo concordara
com a linha dura do regime. “Para evitar a reformulação dos planos
revolucionários, a única forma proposta e aceita pelo governo federal, através
do general Paulo Trajano, foi a ação terrorista”, escreve no mesmo manuscrito.
Segundo Félix, “o terrorismo foi então como uma saída de emergência para o
governo federal, pois não podia agir contra tantos implicados na trama e nem
lhes convinha dar-lhes a liberdade para reassumir as rédeas que lhes foram
arrancadas pela revolução de março de 1964”.
Todos
os integrantes do grupo contaram, depois de presos, que no caso do furto das
armas Trajano participou dos detalhes do planejamento e, diante da
possibilidade de identificação dos autores, garantiu que “acertaria” com a
Polícia Federal um jeito de evitar que fossem encontradas impressões digitais.
Disseram que o general ainda forneceu um álibi caso surgissem suspeitas sobre o
sumiço dos envolvidos no dia da ação: todos estariam com ele, Trajano, numa
caçada no Mato Grosso
O
general Paulo Trajano
Apontado
por Aladino Félix como o homem que deu a ordem para o furto das armas no QG da
Força Pública e do atentado a bomba no antigo QG do II Exército, Trajano
expressa espontaneamente no depoimento que prestou no dia 2 de setembro de
1968, no inquérito aberto pelo II Exército para investigar o envolvimento do
general com o grupo, um desejo de que, cem dias depois, se revelaria profético:
“O governo federal deveria aproveitar o momento para endurecer o regime,
acabando de vez com a desordem reinante no país”, disse.
Ao
Dops, que assumiu o caso assim que o grupo se responsabilizou pelos atentados
terroristas, o general Trajano conta que havia relatado o furto das armas ao
então chefe da PF no Rio (Guanabara à época), general Luiz Carlos Reis de
Freitas. Afirma que, assim que soube do furto das armas na casa de Aladino
Félix, chegou a comentar com Freitas que o episódio serviria para “desnortear”
oficiais da Força Pública que, segundo versão nunca comprovada, conspiravam
contra o governo.
A
mesma história foi contada por Aladino Félix em seu relato-confissão. Segundo
ele, os oficiais da Força Pública preparavam uma rebelião para derrubar Costa e
Silva. O movimento teria sido gestado na França, através de contatos do
ex-presidente Juscelino Kubitschek com Charles de Gaulle, numa articulação que
envolvia, no Brasil, os dirigentes da Frente Ampla liderada por Carlos Lacerda
e apoiada por outros líderes cassados pela ditadura. O levante ocorreria no dia
25 de janeiro, com o assassinato do presidente e do ex-governador Abreu Sodré.
Nesse dia, diz, Costa e Silva estaria na capital, participando das comemorações
em homenagem ao aniversário da cidade. Lacerda também estaria em São Paulo, num
evento no Teatro Municipal, de onde daria a senha para desencadear a rebelião,
que seria seguida por levantes na Brigada Militar gaúcha e nas PMs de Santa
Catarina, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Bahia.
No
início de janeiro, segundo as investigações, Aladino Félix e Trajano se
encontrariam várias vezes. O general diria que ouvira e acreditara na
conspiração e, como era amigo de Costa e Silva, que anos antes havia sido seu
comandante no Segundo Batalhão de Infantaria do Exército em São Paulo, decidiu
informar o governo. No depoimento, diz que Aladino Félix teria se passado como
aliado dos conspiradores e chega a afirmar, numa versão que a própria polícia
acha delirante, que viu um primo e homem de confiança de Lacerda, Paulo Bucker
Lacerda, “confabulando” com o místico no escritório deste.
O
general sustenta que, convencido dos riscos que o regime e o presidente
corriam, procurou a chefia da Polícia Federal do Rio de Janeiro (à época
Guanabara). De fato, dias depois, ele e Aladino Félix foram ao Rio e detalharam
o que sabiam – este colocou tudo num relatório datilografado. A PF passou a
tratar como informação real e a repassou ao chefe da Casa Militar do Palácio do
Planalto, general Jayme Portella. Costa e Silva, então, cancelou a viagem a São
Paulo.
No
dia 27 de janeiro, com Marinha e Aeronáutica de prontidão, o Exército cercou e
fez uma série de incursões pela capital paulista, mas nada de anormal foi
registrado. Só em março os jornais noticiariam que um golpe havia sido abortado
e apontavam o principal responsável pelo desmonte dessa rebelião: Aladino
Félix. Era aplaudido pela direita e, em entrevistas, chegou a afirmar que
enviou, sim, um bilhete que chegara às mãos de Costa e Silva.
Nos
meses seguintes, as ações da direita e da esquerda se alternariam. A VPR
(Vanguarda Popular Revolucionária) colocaria a bomba na sede do Estadão, que à
época estava instalado na rua Major Quedinho, no centro da capital, e roubaria
um paiol de armas no Hospital Militar do Exército. Por outro lado, os
paramilitares dariam curso aos atentados em série. Num só dia, 19 de agosto,
véspera das primeiras prisões por causa do roubo ao BMI, explodiriam as bombas
no Dops e nas varas distritais criminais da Lapa e de Santana.
Os
terroristas e o militar
Com
o esclarecimento do roubo ao BMI, vieram à tona o furto das armas e os demais
atentados. Trajano admitiu, em depoimento ao Dops, que foi informado e viu as
armas furtadas na casa de seu amigo Aladino Félix, mas negou que soubesse das
demais ações.
Depoimentos
e acareações feitas pela polícia colocam o general, no entanto, na cena em que
se planejou o furto: todos disseram que, consultado sobre a ação, o general
pediu um tempo para responder, e que só teria dado a ordem de execução depois
de conversar com o comando da PF no Rio.
Um
dos militares do grupo, o sargento Rubens Jairo dos Santos, diretamente
envolvido em várias explosões de bomba, aponta o dedo direto para o amigo do
presidente: “O general Trajano deu a ordem para colocar a bomba no QG do II
Exército”, afirmou o militar em depoimento. O objetivo, segundo ele, era
assustar e alertar o então comandante da força, general Syseno Sarmento, sobre
a continuidade da conspiração entre oficiais da Força Pública, mesmo depois de
“abortado” o “plano” de assassinar o presidente.
O
delegado do Dops tachou de “evasivas” as respostas do general nas acareações e
afirmou que os que o acusaram de envolvimento no furto se comportaram de
maneira firme e convincente. Mas, em relação à suposta conspiração contra Costa
e Silva ter motivado o comportamento do general, o delegado Sidney Benedito de
Alcântara se mostra mais crédulo. Em seu relatório, ele diz que o general
Trajano “queria ser solidário a Costa e Silva, com quem servira na vida militar
e de quem recebeu valiosos apoios”. Reconhece, no entanto, ser implausível que
um militar experiente se deixasse iludir por teorias conspiratórias que o
teriam feito assumir “conduta terrorista”. No final do relatório, repete o que
imagina ter passado pela cabeça do líder da direita ao ordenar os ataques aos
seus seguidores: “O governo ver-se-á na contingência de adotar represálias,
impondo um regime de força, desviando, dessa forma, o Brasil do abismo a que
está caminhando”.
Poupado
pela Justiça Militar de São Paulo, que nem sequer o considerou investigado,
Trajano se tornaria alvo de um inquérito só mais tarde, aberto inicialmente no
Rio e, depois, transferido para o II Exército, em São Paulo. Foi preso em
setembro no QG da Segunda Divisão do II Exército até que concluísse seu
interrogatório, algo como uma prisão provisória nos dias de hoje. Mesmo acusado
de terrorismo, foi solto alguns dias depois por decisão unânime dos ministros
do STM, entre os quais votou contra a decretação de prisão preventiva o general
Ernesto Geisel, que em 1974 sucederia o general Emílio Garrastazu Médici, chefe
do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) no período dos atentados da
direita.
O
SNI e a farsa
As
suspeitas de que a cúpula do regime militar sabia dos atentados da direita em
São Paulo são reforçadas por um relatório do SNI de agosto de 1969. Numa
retrospectiva sobre o papel da Força Pública, então com 36 mil homens livres do
“micróbio vermelho” e, portanto, “força antirrevolucionária” a favor do regime,
o agente diz que o grupo de Aladino Félix tinha a intenção de levar todo o
arsenal dos 350 homens que integravam o antigo Departamento da Polícia Militar
e que a autoria do atentado ao QG da Força Pública foi encoberta por oficiais
graduados da corporação, supostamente mancomunados com as ações paramilitares.
O
agente informa que o soldado Jessé, que classifica como “lugar-tenente” de
Aladino Félix, e os sargentos Rubens Jairo dos Santos e Juarez Nogueira
Firmiano, que participaram da maioria dos atentados, chegaram a ser presos no
mesmo dia em que o petardo explodiu no QG da Força Pública, em 10 de abril de
1968, destruindo um dos elevadores. Os três foram soltos, frisa o agente do
SNI, sem nem sequer serem investigados.
“No
dia seguinte ao da explosão, após o término do expediente, o major Edson [Edson
Isaac Corrêa] desceu à prisão e os colocou em liberdade por ordem do cel.
Vilela [José Vilela dos Santos, então comandante do Estado Maior da Força
Pública]. É evidente que tais elementos, se pressionados, iriam revelar o plano
e para que isso não acontecesse, os oficiais tomaram aquela atitude”, escreve o
agente do SNI.
O
responsável pelo inquérito policial-militar (IPM), capitão Cid Benedito
Marques, orientado por superiores para “nada investigar”, passou então a ouvir
pessoas que o agente denomina de “trouxas”. O depoimento de Aladino Félix nesse
IPM foi só para cumprir tabela: o místico negou que soubesse de qualquer
detalhe e foi dispensado com as honras de sempre. “Referido IPM encontrou
sérios obstáculos para nada apurar, somente vindo à tona mais tarde [os
atentados], com a descoberta pela Polícia Civil do terrorista Sábado Dinotos”,
afirma o agente do SNI.
“Será
que é cego?”
No
IPM da Força Pública há outras evidências de que entre os arapongas que
integravam os órgãos de informação do governo as ações do grupo eram um segredo
de Polichinelo. A mulher de um dos soldados envolvidos, Alice Moreira, revela,
em depoimento prestado no início de maio, que algumas reuniões de planejamento
das ações ocorreram em sua casa.
Alice
afirma que Aladino Félix sempre estava presente, se apresentava como judeu
anticristão e anticomunista, falava de discos voadores, religião – parte de um
proselitismo esotérico que a polícia chamou de “isca dourada” – e, no que de
fato interessava, encerrava suas palestras com um discurso político radical,
pregando a destruição de estabelecimentos públicos. Alice diz ter tomado
conhecimento, nessas reuniões, de que as armas furtadas estavam com o líder do
grupo.
Há,
ainda, nos autos do mesmo IPM outros indícios que jamais poderiam ter sido
menosprezados numa investigação rigorosa: um bilhete que, embora anônimo, já
esclarecia, em abril, de onde partiam os atentados. O autor se dirige ao
capitão Cid Benedito Marques e vai ao ponto: “Será que é cego? Onde está a sua
experiência de soldado? Não vê que o plano terrorista que se desenvolve em São
Paulo está estreitamente ligado ao cidadão Aladino Félix e que os maiores
terroristas, seus seguidores, na maior parte, são da Força Pública?”, diz o
signatário, que se apresenta como amigo secreto do capitão e assina com o
curioso pseudônimo de “Altos Significados”. Os quatro meses seguintes seriam
marcados por intensos atentados a bomba praticados pelo grupo.
Apontado
por Aladino Félix como um dos conspiradores que pretendiam derrubar Costa e
Silva, o capitão acabou afastado do IPM. As investigações só seriam retomadas
mais tarde por outro oficial, quando o delegado Francischi já havia
destrinchado as ações do grupo a partir do roubo ao BMI, em agosto.
Ao
concluir seu relatório, no dia 30 de maio de 1968, o capitão Cid apontava
“Sábado Dinotos e seus sectários” como suspeitos das ações terroristas,
“atividades essas”, ele faz questão de destacar, “que já são do conhecimento do
II Exército, DOPS e Polícia Federal”. Não há registro de qualquer procedimento
aberto pelos órgãos federais até a prisão do grupo.
“Com
um pouco mais de chance, teria o cap. Cid desbaratado ainda no início todo o
grupo terrorista e, o que é melhor, teria evitado uma série de atentados
terroristas”, escreve, em 12 de outubro de 1968, o tenente-coronel Raul Humaitá
Villa Nova, no relatório que encerraria o IPM da Força Pública.
Conforme
demonstra a cronologia dos episódios relatados nos autos, o grupo surgiu como
força paramilitar no final de 1967, executou as primeiras ações em janeiro,
intensificou os atentados de abril a agosto e só seria descoberto, por acaso,
pelo vínculo com um roubo comum. O caso, como se viu, foi esclarecido com o uso
da tortura por um setor da Polícia Civil, o Deic, que reprimia os crimes contra
o patrimônio, mas não se vinculava à polícia política. As investigações deixam
claro que, apesar das fortes evidências sobre a autoria dos atentados, a
extrema direita agiu com intensidade e desenvoltura até a prisão de Aladino
Félix, em 22 de agosto.
O
grupo foi investigado durante cinco anos, de 1968 a 1973, em três inquéritos
civis (um deles tocado pela Polícia Federal, tão pífio que não chegou a nenhuma
conclusão), dois IPMs, um processo da Segunda Auditoria da Justiça Militar
paulista e, ainda, duas apelações, que tramitaram no STM e, finalmente, no
Supremo Tribunal Federal (STF).
“Gênio
e louco”
Quando
a história do terrorismo veio à tona, o conceito do homem que “salvara” a vida
do presidente e evitou a “contrarrevolução” virou de pernas para o ar. De
lúcido e paparicado colaborador do regime militar, Aladino Félix passou a ser
tratado como um doido. A polícia o descreve depois como um místico que falava
ter sido contatado por alienígenas e que se apresentava como o ungido que
reunificaria as 12 tribos de Israel, enfim, um Messias.
À
exceção do general Trajano, que o conhecia havia cinco anos e intermediou os
contatos de Aladino Félix com as altas fontes do governo, todas as outras
autoridades militares ouvidas no IPM do II Exército passaram a descrevê-lo como
excêntrico. “Imaginação fértil e fantasiosa”, disse, em 23 de outubro de 1968,
o coronel Edgard Barreto Bernardes, da PF, designado para averiguar as
denúncias sobre o plano de assassinato de Costa e Silva.
“Pessoa
com ideia fixa sobre subversão, atentados e conspiração”, acrescentou o então
chefe da PF no Rio, coronel Florimar Campello. O diretor-geral da PF, general
Luiz Carlos Reis de Freitas, afirmou que era um “lunático esperto e oportunista
em busca de notoriedade”. O delegado Alcântara o perfilaria como misto “de
gênio e de louco”.
Concatenadas,
as declarações das autoridades, todas prestadas no mesmo dia, em depoimento que
consumiu menos de uma lauda datilografada, levavam à desconstrução de Aladino
Félix. O governo só não conseguiria explicar por que teria acreditado nos
delírios de um místico a ponto de determinar a manobra militar em janeiro de
1968 para inibir uma suspeita história de golpe.
Como
a imprensa já estava sob censura, as mesmas autoridades que acreditam no seu
relato em janeiro e eram informadas diariamente pelo SNI nem se deram ao
trabalho de esclarecer por que passaram a tratá-lo como lunático só sete meses
depois da primeira investigação. Já no primeiro relatório sobre o caso, o
delegado Alcântara afirmava que Aladino Félix “realmente” tinha contatos com
autoridades do governo federal até ser preso.
Crime
e perdão
Em
30 de setembro de 1970, a Segunda Auditoria da Justiça Militar de São Paulo
afastou Trajano do processo por achar que “não era o caso” de investigá-lo. Os
quatro conselheiros, acatando o relatório do juiz Nelson Machado Guimarães (o
único civil da turma e cuja atuação ficou marcada por sentenças implacáveis e
duras com militantes da esquerda), consideraram que não havia provas sobre os
atentados e condenaram Aladino Félix e o soldado Jessé Cândido de Moraes, pela
Lei de Segurança Nacional, a cinco anos de reclusão por “terrorismo”, apenas
com base no furto das armas. Os demais envolvidos foram condenados a penas mais
baixas, entre um e três anos.
Com
a abertura de IPM contra o general Trajano, detentor de foro privilegiado, o
processo subiria para o STM. Lá, inconformado com a sentença, o advogado do
grupo, Juarez de Alencar, sustentou toda a linha de defesa no perfil dos réus e
nos objetivos políticos dos atentados que, segundo ele, haviam sido
desvirtuados no inquérito policial. Disse que Aladino Félix e os militares
“estavam convictos, na sua posição de homens de direita, e de defensores da
Revolução de Março, da absoluta legalidade revolucionária de suas ações”.
Alencar
lembra que Trajano, “companheiro e amigo” de Costa e Silva, deu ao regime
“notícia indiscutível da intentona”, argumentou que “quem está com o governo
não pode ser condenado pelo próprio governo” e pediu não apenas a absolvição de
todos, mas também que os militares liderados por Aladino Félix fossem
perdoados, reincorporados à Força Pública e promovidos.
Foi
atendido quase plenamente. Em outubro de 1970, seguindo parecer da procuradora
Mary do Valle Monteiro no recurso de apelação, os ministros do STM absolveram
todos os demais acusados e reduziram a pena de Aladino Félix para oito meses. O
STM descartou os atentados a bomba e os demais crimes, fixando a pena só pelo
furto das armas, procedimento bem diferente do aplicado pela mesma justiça aos
militantes da esquerda armada.
Aladino
Félix permaneceu preso, aguardando um exame de sanidade mental solicitado pelo
Conselho Permanente de Justiça, este convencido pelos argumentos de que se
tratava de um doido. O general Paulo Trajano da Silva, já absolvido, também
estava livre de desconfortos.
Semi-imputável
O
laudo assinado por dois psiquiatras forenses, José Roberto Belelli e Carlos
Roberto Hojaij, o define como detentor de personalidade egocêntrica, com
inteligência acima da média e domínio pleno dos temas sobre os quais era
instado a falar, mas, no final, corrobora a tese das investigações: “Não se
trata de doente mental. Trata-se de portador de perturbação da saúde mental
cuja capacidade de entendimento ao tempo dos fatos era apenas parcial”, dizem
no documento encaminhado no dia 7 de outubro de 1971.
A
procuradora Mary Valle Monteiro, que antes considerara que o processo inteiro
era “tudo loucura”, já esperava o resultado. “A conclusão de que é fronteiriço
não nos decepciona. É um semi-imputável”, afirma, pedindo a confirmação da
sentença de oito meses de reclusão, plenamente acatada pela turma do STM,
conforme despacho do ministro Lima Torres, em 12 de janeiro de 1972. “É, no
mínimo, um lunático”, acrescentou o ministro. Inconformado com o estigma de
débil mental, Aladino Félix recorreu ao STF.
Sem
que nenhum fato novo tenha ocorrido, o recurso de apelação dormitou 21 meses no
STF até que o relator, ministro Rodrigo Alckmin (tio do presidenciável tucano
Geraldo Alckmin) encerrasse o caso no dia 9 de outubro de 1973, com um despacho
de cinco linhas, em que negava provimento à apelação. Aladino Félix e os demais
envolvidos já estavam em liberdade e o país, mergulhado na ditadura, vivia sob
o AI-5 os horrores dos anos de chumbo.
Aladino
Félix amargou uma longa temporada atrás das grades. Foi preso pela primeira vez
em 22 de agosto de 1968, mas teve a prisão relaxada em 17 de outubro pelo juiz
da 9ª Vara Criminal de São Paulo, responsável pelo processo relacionado ao
roubo ao BMI de Perus. A soltura, na verdade, foi um cochilo dos militares
responsáveis pelo IMP do II Exército, que empreenderiam uma verdadeira caçada
para prendê-lo novamente nove meses depois. No dia 15 de setembro, ele
conseguiu escapar pela porta da frente da Casa de Detenção, no Carandiru, mas
acabou preso novamente uma semana depois.
Ironicamente,
foi levado para o Presídio Tiradentes, onde teve de conviver com presos
políticos de esquerda. Estava entre os detentos contados num mutirão do
Judiciário destinado a avaliar o cumprimento de penas no final de 1971. Só
seria solto definitivamente em janeiro de 1972, depois de cumprir, em regime
fechado, mais de três anos de cadeia, dois anos e quatro meses a mais do que o
tempo previsto na sentença definitiva.
Aladino
Félix morreu aos 68 anos, em circunstância prosaica (complicações geradas por
medicamentos que havia ingerido para uma simples cirurgia de hérnia), no dia 11
de novembro de 1985, ano em que o país, já livre da ditadura, ingressava na
redemocratização e ele mergulhava no ostracismo.
Fonte:
Superior Tribunal Militar/Integra-JMU
Por
Vasconcelos Quadros, em aPública
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