Sou
Lenio Streck. Avô do Santiago e do Caetano. Professor universitário,
constitucionalista, advogado parecerista, fui procurador de Justiça do Rio
Grande do Sul e, vejam só, fui também goleiro. Sempre gostei de futebol. Tenho
diploma de comentarista de futebol. Não por menos, quando criança, na minha
Agudo - terra do Bagualossauro -, pedia ao Weihnachtsmann, o bom velhinho, que
me trouxesse uma bola e uma camiseta de goleiro. Um cético daria de ombros:
Papai Noel não existe; não para uma criança que, de tão pobre, odiava férias
(férias significa ficar em casa; ficar em casa significa trabalhar). É óbvio
que ele não vem.
Ou
será que vem? Não sei. Fato é que eu fui goleiro. Com a bola, a camisa, e até
as luvas, que nem imaginava à época. Abaixo, duas fotos: a primeira, de 1974,
jogando no Avenida; a segunda, de 2017, no Prerrogativas F.C, time de advogados
no jogo contra o Politeama, do Chico Buarque.
Pois
é. Será que foi o velho Santa quem me deu as luvas e camiseta? Coincidência ou
espírito de Natal?
Não
sei. O que sei é que sou um incorrigível otimista metodológico. Ajo sempre como
se. Pudera: estou já há três décadas lutando contra os predadores do Direito.
Já perdi muitas, e continuo aqui. Stoic mujic.
Continuo
aqui. E hoje, como já se tornou tradição aos finais de ano, divulgo, aqui na
Senso Incomum, minha carta pro Weihnachtsmann, que era como chamamos o Papai
Noel em terras de colonização alemã. Eu tinha de recitar a seguinte “oração”:
“Ich bin Klein, mein Herz ist rein, Darf niemand drin wohnen als Jesus allein”
(“sou pequeno, meu coração é puro, nele não deve morar ninguém, a não ser
Jesus”). Sem pieguice, mas, repetindo isso agora, uma lágrima me pega
desprevenido.
Celebrando
o Natal que se aproxima. Pois é... muito embora alguns pensem que eu seja
rabugento, por estar aqui na ConJur brigando toda quinta-feira contra o
subjetivismo e o emotivismo, não sou nenhum Scrooge — falo do personagem de
Dickens que odiava o Natal. Eis, pois, minha carta ao Velho Noel, com um pedido
para cada mês do ano que se aproxima.
“Querido
Papai Noel,
Você
bem sabe, as coisas aqui no direito brasileiro não tem sido fáceis. É
flexibilização de garantias pra cá, instrumentalismo processual pra lá,
pamprincipiologismos, ponderações.... um horror. Bem, o senhor sabe. Então, é
por isso que, neste Natal, tenho alguns pedidos. Um para cada mês de 2019. Peço
que me entenda, Noel: não quero abusar. Mas é que as coisas realmente não têm
sido fáceis.
Meu
primeiro pedido vai ilustrar um pouco disso. Pra começar, Papai Noel, queria
que o senhor ajudasse com relação a coisas tipo essa aqui. É, Noel, é a esse
ponto que chegou o ensino jurídico por aqui. Eis o best seller: ‘Seja Foda em
Direito Constitucional: Aprenda de forma Simples e Direta tudo sobre Direitos e
Garantias Fundamentais’. Até achei que fosse “Seje f....”. Quero, então, uma
ajudinha na construção do movimento salvacionista chamado Unfucking the
Constitution (só posso dizer o nome em inglês porque me recuso a dizer
palavrões). Ou em francês: Défornication de la Constitution. Antes que seja
tarde demais. Sim, Pai Natal, ajude-me a fazer esse contramovimento.
Alguns
pedidos têm muito a ver com isso, meu caro Noel.
Nosso
ensino jurídico não foi, até hoje, capaz de ensinar – direito - conceitos
básicos de Teoria do Direito. Sinopses, esqueminhas, facilitações, quiz shows,
Direito-simplificado-mastigado-resumido... Afinal, “seje f... em direito!” Pois
é. Seria pedir demais, como segundo pedido, que as pessoas parassem, por
exemplo, de achar que positivismo se resume a “cumprir a letra da lei”? Ontem
mesmo, em um grupo de uats de que participo (uma neocaverna), um juiz pregava
que o STF tinha que ser positivista. O que será que ele queria dizer com isso?
O drama, Papai Noel, é que até hoje não se entendeu que o positivismo jurídico
tem como característica central a discricionariedade (que no Brasil é bem mais
de discricionariedade, sabemos) e que seu calcanhar de Aquiles é exatamente o
de não se preocupar com a decisão”. É pouco isso? Pior: qualquer coisa que se
coloca no lugar de um “pretenso positivismo” vira uma coisa pegajosa chamada
“pós-positivismo”.
Meu
terceiro pedido parte de outra confusão teórica: será exagero pedir que não
mais se diga por aí que Dworkin era um subjetivista, e que o Juiz Hércules é
ativista? Pobre Dworkin. Que não pensem que isso seja bobagem, Pai Natal: é
graças a invencionices desse tipo que “princípios” são usados para justificar
qualquer decisão arbitrária. Decide-se com base em nada e, ex post facto,
tchan, tchan tchan: Um “princípio”. Inventado, na maioria dos casos. Aqui pelo
Brasil, temos pamprincípios, que dão um verniz jurídico a decisões puramente
emotivistas.
Falando
nisso.... Quem sabe, Noel, como um quarto pedido, o senhor também possa fazer
com que as pessoas comecem a encarar nossos desacordos morais (disagreements)
e, principalmente, o Direito, a prática jurídica (justamente a instância que
resolve esses desacordos) sem abraçar o assombroso emotivismo? MacIntyre –
adoro ele, Pai Noel - falava sobre isso: agimos como se o emotivismo fosse
verdade; como se tudo não passasse de opiniões, de atitudes. Como se não
houvesse qualquer critério a que recorrer, e que discutíssemos meramente com
base em preferências tão subjetivas quanto arbitrárias. Pois é. Não há
verdades, tudo é relativo, pois não? Se o emotivismo for verdadeiro, é melhor
que não acreditemos nele. Para o bem dos nossos netos.
Essas
preferências baseadas em absolutamente nada têm dominado nosso Direito. Quer
ver? Eu gostaria também, Papai Noel, no meu quinto pedido, que o senhor desse
um jeito nessa história de que, veja só, “o Estado é grande demais”, é
“ineficiente”, e que, por isso, coisas tipo o homeschooling são
constitucionais. Acho que essa não é tão difícil, Noel: é só o senhor ensinar a
velha Lei de Hume pra esse pessoal que insiste em derivar, sem argumentar,
aquilo que deve ser de um é (por vezes, um é que, por si só, já é bem
questionável...). “O Estado é ineficiente, logo, vamos parar de mandar as
crianças pra escola”? Que tipo de conclusão é essa? (Ah, o Papai Noel, que sabe
bem das coisas, contou-me, em segredo, à socapa, que o Tratado de Hume, no
primeiro rascunho, levava o nome de What does the ass have to do with the
pants?)
Nessa
linha, Velho Noel, acho que só o senhor pra dar um jeito na epidemia do livre
convencimento. Pois é. Não adiantou tirar o “livre” no CPC/2015. Ainda
insistem, sob o rótulo de “livre convencimento motivado”. Acredita, bom
velhinho? Por isso meu sexto pedido. Só o senhor pra salvar. Veja: mais tarde
escreverei outra carta. Mas, para adiantar, o imbróglio do HC de Lula, no
TRF-4, de julho 2018 (aquele em que Moro impediu o cumprimento do writ) que
envolveu várias autoridades com posições antagônicas e por isso responderam
procedimento preliminar-disciplinar, todos foram absolvidos com base no livre
convencimento (arquivamento). Ou seja, Pai Noel: todos tinham livre
convencimento, segundo o CNJ. E, portanto, todos tinham razão. Ou nenhum deles.
Se tudo é, nada é, não é mesmo Papai Noel? Pois é, achei meu sétimo pedido.
Explique-me como uma coisa pode ser e pode não ser... ao mesmo tempo.
Ah,
falando em CPC, tenho mais alguns pedidos. Eis o oitavo: neste Natal, quero que
se entenda finalmente que os “precedentes”, no Brasil, não são precedentes. São
mera quimera pra sustentar teses gerais e abstratas que os Tribunais constroem
com olhar prospectivo. Bem diferente do stare decisis legítimo do common law.
Que
tal também, Papai Noel, finalmente entenderem que há um artigo no Código que
exige a observância de coerência e integridade? Isso não é perfumaria. O Código
é de 2015, certo? Os artigos devem ser cumpridos, certo? Pergunto: há coerência
e integridade no direito brasileiro? (Aqui o estagiário levanta uma plaquinha
que lê “pergunta retórica”.) Esse é meu nono pedido: coerência e integridade. O
Código não deu jeito, talvez o Papai Noel dê. Tenho fé. Isso já seria um grande
alívio, meu Velho Noel.
Sabe,
meu décimo pedido vai até em seu auxílio, para tornar a tarefa um pouco mais
fácil: que a doutrina volte a doutrinar, Papai Noel, já que temos mais de 120
programas de mestrado e doutorado e centenas de livros são lançados todos os
meses Brasil a fora. Servem para o quê? Já temos problemas demais; não precisamos
de uma Teoria do Direito caudatária, condescendente com o neorrealismo jurídico
brasileiro que consagra a tese de que Direito é (só) o que o Tribunal diz que
é. Ah: aproveitando, peço que embargos ou agravos não sejam “decididos” em duas
linhas como “mantenho a decisão pelos próprios fundamentos; encaminhem-se os
autos ao Tribunal Superior competente, na forma do art. 1042, par. 4º. do CPC”,
enfim, que a CF seja cumprida de forma ortodoxa.
Meu
décimo primeiro pedido, então, passa por isso. Que o Direito seja respeitado, e
que os Tribunais entendam que não estão livres para fazer dele o que as
contingências morais, econômicas e políticas determinam. Direito vale. Que se
entenda que ativismo nunca é bom, e que ele pode ser traduzido em posturas que
vão pra mais e pra menos. Que o STF entenda, Noel, que é responsável por fazer
valer a Constituição. De forma ortodoxa e não heterodoxa. Tal como ela é.
Assim,
Santa Claus, meu décimo segundo pedido não deixa de ter relação com todos os
anteriores; é uma espécie de salvaguarda de tudo que mais importa nos momentos
difíceis como é este que vivemos. Que a Constituição seja cumprida. Papai Noel:
que se respeite a força normativa da Constituição.
Um
abraço do Lenio, o menino de Agudo, aquele que rezava o Ich bin klein....”
Será
que pedi demais, leitores? Bem, talvez. Mas é como disse: sou um incorrigível
otimista.
Feliz
natal a todos! Na forma da lei e da Constituição!
Post
scriptum: bom, já tinha encerrado a coluna e pedi de volta para acrescentar
que, como subscritor da ADC 44 (OAB) e coadjuvante da ADC 54 (PCdoB), fico
muito feliz com a decisão do Ministro Marco Aurélio, quem disse que, onde está
escrito presunção da inocência (art. 283 do CPP), deve-se ler presunção da
inocência. Simples assim. Na democracia, é sempre desejável seguir bem de perto
os limites semânticos de um texto jurídico, mormente se ele estiver em
conformidade com a Lei Maior. Vamos ver os desdobramentos.
Mientrastanto,
vou ajudar a montar a árvore aqui de casa.
* Lenio Luiz Streck
é jurista e professor. Publicado originalmente no Consultor Jurídico.

Nenhum comentário:
Postar um comentário