A
prisão sem provas do ex-presidente Lula seria só mais uma injustiça contra um
cidadão brasileiro, dentre as inúmeras não computadas pelo descaso dos órgãos
oficiais, não fossem algumas particularidades que fazem deste caso um sui
generis no mundo.
Não,
eles não queriam prender um homem, muito menos um criminoso. Eles precisavam
deter uma onda, uma ideologia (como se grades conseguissem fazer isso). O
aprisionamento de pessoas que representam ideias e ideais fazem represar o rio,
aumentar incomensuravelmente sua força.
Como
prender um homem forjando provas de crimes inexistentes, um homem que em breve
será indicado para receber o Prêmio Nobel da Paz? Indicação, aliás, feita pelos
próprios ganhadores desse prêmio. Como prender um homem a quem o Papa trata
como amigo? Como prender um homem
reverenciado pelas maiores autoridades das nações civilizadas e desenvolvidas,
idolatrado por todos os povos do planeta?
Esta
prisão tem maior alcance que o que pretendem os seus inimigos. Talvez seja até
providencial. Sim, parece que Lula tem uma missão com a humanidade. E ele a
está cumprindo. Missão até maior do que o que ele mesmo vislumbra: a de
escancarar e denunciar um sistema de justiça podre, corrompido e elitista.
A pobreza encarcerada
Quantos
presos inocentes estão sofrendo nos cárceres deste país, pela
irresponsabilidade e incompetência de um sistema judiciário feito pelas elites
e para as elites, que ignora a existência dos pobres, para os quais há polícia,
mas não há justiça? Segundo apurou o jornal O Globo, de 12 de dezembro de 2015,
não existem dados oficiais sobre prisões provocadas por erros de agentes
públicos. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) diz não contar com
estudos a respeito e, à reportagem, sugeriu que fosse consultado o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). O órgão, por sua vez, afirmou também não fazer o
acompanhamento e devolveu a “bola” (ou “bucha”) ao Depen.
Para
que saber, afinal, quando se trata da população pobre? Qualquer pessoa chega a
esta conclusão porque esta é a prática da nossa autointitulada justiça.
Pesquisas
independentes, realizadas pelo Instituto Sou da Paz, em parceria com o Centro
de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, no entanto,
mostram que em 2013, só no Rio de Janeiro, foram presas (supostamente em
flagrante) 772 pessoas que vieram a ser absolvidas mais tarde. Consideremos que
muitos outros inocentes permanecem presos por não receberem uma “ajuda do
acaso”, já que ninguém, nenhuma autoridade se interessa por elas. Nem por elas,
nem por justiça. É interessante a observação que faz Ivan Marques, diretor do
Instituto Sou da Paz: “Nossos juízes e
policiais têm uma ânsia em encarcerar as pessoas”.
Está
à luz do dia, escancarado a todos, o descaso, o descalabro. Porém, agora, o
penitenciado é Luís Inácio Lula da Silva. Um processo, uma condenação e um
cárcere dignos de um seriado televisivo, com mocinhos e bandidos e muito
suspense. Para a população, Lula foi apresentado como o bandido. Para quem tem
compromisso com a verdade e com a justiça (e para ser fiel à realidade), os
bandidos estão ganhando.
Digo
estão porque ainda não acabou. Porque é dever ético e moral de todos nós nos engajarmos
para que a justiça de verdade prevaleça, para que a justiça brasileira passe a
ser responsável, cidadã. Devemos exigir o básico: que alguém só seja
encarcerado após o julgamento em todas as instâncias; que seja garantido o
pleno direito de defesa; que sejam esgotados todos os argumentos de inocência;
e que existam provas de fato. Nada disso ocorreu com o ex-presidente Lula.
Algumas
pessoas iludidas imaginam que a tragédia e o desdém da justiça, que penaliza
Lula e milhares pobres neste país, só vai acometer os outros. Mas, quando a
justiça dá às costas a sociedade, qualquer um de nós que não tenha “costas
largas” é apenas o outro.
Ouvi,
certa vez, num programa radiofônico, um caso que sempre se repete, pelo menos
na semelhança: um homem de classe média alta de São Paulo se tornou suspeito
por ter estuprado uma criança. Este homem gastou todo o seu patrimônio e se
endividou pagando advogados, corrompendo policiais e membros do poder
judiciário só para não ser preso. Ele não acreditou na polícia ou na justiça,
pois havia percebido que ninguém queria se dar ao trabalho de investigar e de
fazer um julgamento embasado. Todos tinham sede de ‘sangue’, de vingança.
Por
obra do destino, digamos assim, a garotinha vítima do estupro, certo dia,
andando com o seu tio viu o verdadeiro estuprador na rua e avisou o tio, que
imediatamente chamou a polícia. O verdadeiro criminoso foi preso.
Estes
não são assuntos isolados. Foi amplamente divulgado, recentemente, o caso do
cobrador de ônibus, Luis Alves de Lima, que em 2009 foi acusado injustamente de
ter violentado a própria filha. A mãe foi acusada de ter sido conivente. O
circo foi armado pelo senador Magno Malta (PR), que presidiu uma CPI sobre
Pedofilia usando o caso sem fundamento. O cobrador ficou nove meses na prisão,
onde foi torturado e perdeu a visão de um olho. Um exame médico atestou que não
houve estupro. O homem foi inocentado.
Eu
conheci pessoalmente um caso destes, no qual uma médica incompetente e
precipitada afirmou que uma garotinha foi estuprada e, imediatamente, a polícia
foi buscar, sob chutes nas costelas, o jovem que estava com a criança (sua
sobrinha). A tia do rapaz tentou interferir em favor do sobrinho porque sabia
que não tinha ocorrido nada de mal, mas os trogloditas policiais a xingaram e o
levaram. Não é necessário dizer que era gente muito pobre. Ao fazer exames mais
detalhados e ao ouvir o histórico médico da criança, soube-se que o que ela
tinha era uma doença não tratada devidamente, por conta da extrema pobreza da
família.
O que cabe ao juiz
As
leis foram feitas inspiradas pelos grandes pensadores, pelos filósofos, para
atender perfeitamente à natureza humana, para serem justas, imparciais e
eficazes. Então frisemos esta bela observação feita pelo grande filósofo
Sócrates sobre o proceder de um juiz:
“Três coisas devem ser feitas por um juiz:
ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. ”
Eu
acrescentaria a humildade, pois o humilde se preocupa com seus limites e cuida
para errar o menos possível. Não se acha o suprassumo e busca entender como é o
olhar dos menos favorecidos.
Vamos
observar o comportamento talvez do primeiro juiz inspirado por Deus. Sua
preocupação em ser justo e sua humildade em ouvir os sábios conselhos do seu
sogro para ter condições de continuar fazendo justiça, e não mera busca de
promoção pessoal.
Êxodo, capítulo 18
16 Quando têm alguma questão, eles vêm a
mim; e julgo entre eles e lhes declaro os estatutos de Deus e as suas leis.
17 Mas o sogro de Moisés lhe disse: O que
estás fazendo não é bom.
18 Com certeza, tu e este povo que está
contigo desfalecereis, pois a tarefa é pesada demais; não podes fazer isso
sozinho.
19. Ouve-me agora. Eu te aconselharei, e
que Deus esteja contigo: Deves representar o povo diante de Deus, a quem deves
levar as causas do povo;
20 ensina-lhes os estatutos e as leis,
mostra-lhes o caminho em que devem andar e as obras que devem praticar.
21 Além disso, procura dentre todo o povo
homens capazes, tementes a Deus, homens confiáveis e que repudiem a
desonestidade; e coloca-os como chefes de mil, chefes de cem, chefes de
cinquenta e chefes de dez;
22 para que eles julguem o povo todo o
tempo. Que levem a ti toda causa difícil, mas que eles mesmos julguem toda
causa simples. Assim aliviarás o teu fardo, pois te ajudarão a levá-lo.
23 Se procederes assim, e se Deus desse
modo te ordenar, poderás suportar; e todo este povo também voltará para casa
tranquilo.
24 Moisés deu ouvidos ao conselho de seu
sogro e fez tudo o que ele lhe disse.
O que cabe a cada um de nós
Eu
acompanhei com atenção a trajetória política do Lula desde 1978, da sua luta
sindical até os momentos atuais. Em certa ocasião, sendo Lula o presidente da
República do Brasil, consagrado internacionalmente devido ao sucesso do seu
governo, eu, como petroleiro, tive a oportunidade de, junto com os meus
companheiros de trabalho, receber sua visita na empresa.
Pude
observar coisas bizarras, como alguns colegas de trabalho que gratuitamente
odiavam Lula (fruto de uma provável inveja não confessada, como ocorre com
tanta gente) que, diante dele, o tietavam. Porém, o que mais me chamou a
atenção foi a humildade do Lula; humildade não vista nem na menor das
autoridades que o acompanhavam e tentavam imitá-lo, sem sucesso.
Lula
permitia a todos que se aproximassem, convidava as pessoas que trabalhavam na
limpeza e na cozinha, dando a elas prioridade sobre os “mais importantes”. Era
comovente e bonito de se ver. Uma figura ímpar, com os predicados que lhe dão
sabedoria para lidar com o ser humano, promovendo o seu valor ontológico e
antropológico, o faz amado por uns e odiado por outros, o que é comum para
pessoas especiais, de grande estatura moral.
Se
você anseia por justiça verdadeira, inspirada pelos elevados sentimentos
morais, sufoque o ódio e compartilhe com todas as pessoas o desejo de um
julgamento justo para Lula, que obedeça as regras da Constituição Federal, do
direito internacional, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Nessa
situação específica, nosso comportamento é crucial para a mobilização mundial.
Devemos lutar por justiça imparcial, pois ela representa respeito à dignidade
humana e fará de nós agentes fomentadores da justiça e cidadãos de fato. Ou
continuaremos a ser apenas “o outro”, sujeito aos abusos de juízes injustos, de
polícias violentas e autoritárias.
*Nereu H. Cavalcante é
filósofo e ex-sindicalista do Sincato dos Petroleiros.
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