A
sociedade brasileira vive um momento dramático de sua existência. Elegeu um dos
Presidentes da República mais despreparados intelectualmente de toda a história
republicana, portador de desequilíbrio emocional, ardoroso amante de soluções
simplistas e populistas, saudosista da ditadura militar, que se alinha à
intolerância e à violência contra todos os que dele e seu grupo divergem.
Como
entender o Brasil a partir desta eleição? Havia claros sinais de esgotamento do
reordenamento democrático: as revoltas de 2013 dos ainda sem partido contra o
“sistema”; a recessão e o desemprego explosivo pós era Dilma, a Lava Jato
unidirecional escancarando apenas determinados atores da corrupção
generalizada; a greve dos caminhoneiros; a politização do negócio da fé bancado
pelas igrejas evangélicas donas de meios de comunicação poderosos; a campanha
“Lula Livre” contrapondo-se a um poder judiciário cezarista e, finalmente, o
triunfalismo petista desprezando alianças fora de sua hegemonia.
A
corrupção moral e política desarticularam e amedrontaram uma sociedade
fragilizada pela violência e pelo desemprego. Bolsonaro surge, então, como um
“mito” salvador que se estrutura na intolerância e na virilidade do estamento
militar. Na quebra dos valores ligados à cidadania afloraram forças históricas
conservadoras, de viés torcionado: nação (simbolizada pela camisa da seleção
brasileira de boleiros), família (no seu viés machista e autoritário),
religião, bons costumes (com sua homofobia). O bolsonarismo invocou espectros
que se imaginavam exauridos no pós-modernismo, como o falecido comunismo ateu,
o “kit gay”, a misoginia, o empoderamento da violência.
Deixando
a superestrutura, Jair Bolsonaro traz aquilo que se denomina deus Mercado.
Principia pelos interesses antinacionais de mineradoras e de petrolíferas, de
parcela do agronegócio predador de nossa já combalida natureza, passa pela
indústria armamentista, pelos empregadores de mão de obra intensiva que visam à
abolição do que resta dos direitos trabalhistas, assim como dos mercadores da
saúde e da educação que, na ausência do Estado e da Seguridade Social,
aumentarão seus lucros. Alinha também consigo o enorme negócio livre de
impostos dos exploradores da fé religiosa.
Em
1933, Hitler e o Partido Nazista chegam ao poder na Alemanha através do voto
democrático. Também possuíam o apoio político e financeiro da indústria
armamentista, do grande capital financeiro e industrial. Imediatamente
devotaram-se à destruição da democracia e à implantação do regime totalitário
mais odioso da História da humanidade. O mesmo fenômeno já ocorrera na Itália
anos antes com o ex-sindicalista e formatador do “fascismo de oportunidades”,
Benito Mussolini, eleito pelo voto popular.
Thomas
Mann, o maior dos escritores alemães do século XX, compreendendo os perigos que
a ordem nazifascista representava para a Alemanha, assim como para o restante
do mundo, exilou-se e engajou-se na luta democrática. Em 1937, publicou uma
crônica sob o título: Advertência à Europa! A Advertência era dirigida muito
particularmente aos intelectuais, aos escritores, aos artistas, cientistas e a
outros depositários do patrimônio cultural da humanidade. Firmemente Mann
assinala a responsabilidade dos intelectuais que se omitem e se alheiam do combate
aos inimigos da inteligência e da cultura, a pretexto de resguardarem a
“integridade” e a “pureza” do espírito de qualquer contaminação de “caráter
político”. Isto insistia Mann, resultava efetivamente em servir de um modo ou
de outro ao “partido do interesse”, ou seja, os interesses de uma ordem
política decadente, reacionária e por isso mesmo temerosa da cultura e do
espírito.
“A
democracia se realiza efetivamente em cada um de nós, visto que a política se
tornou um negócio de todas as gentes. Ninguém pode afastar-se dela; a pressão
imediata que ela exerce sobre cada um é demasiado forte. O fato é que aquele
que nos declara “eu não me importo com a política”, parece-nos um homem
superado, caduco. Tal ponto de vista revela não somente egoísmo e irrealidade,
mas ainda embuste e estupidez. Mais que ignorância do espírito, o que há nisso
é indiferença moral.”
A
ordem política e social faz parte da totalidade, um aspecto da problemática
humana, não se podendo menosprezá-la sem com isso se pecar contra a própria
humanidade. Portanto como poderia o poeta ou o intelectual esquivar-se,
omitir-se, quando sabemos que a sua natureza e o seu destino o colocaram na
posição mais exposta da “polis”? “O poeta que se omite em face do problema
humano, porque esse aparece sob a forma política, não é somente um traidor da
causa do espírito em proveito do partido do interesse, mas é também um homem
perdido, que perderá a força criadora, o talento e nada fará que apresente
condições de durabilidade”.
O
espiritual, para Mann, considerado sob o ângulo político e social, é a
aspiração dos povos a uma vida em melhores condições, mais justas e mais
felizes, adequadas à dignidade humana. Expressando a essência do pensamento
democrático ele diz “o bom e o nobre é o que qualificamos de humano”. Aquilo
por cuja causa os homens tem lutado e têm tomado Bastilhas de assalto, os
acólitos do autoritarismo proclamam jubilosamente “aquilo não deve existir, que
seja revogado, revogue-se até mesmo a Nona Sinfonia (de Beethoven)!”
Uma
das mais importantes obras primas do grande mestre foi, sem dúvida, o romance
Dr. Fausto. Escrito em 1956 espelha uma visão amadurecida de todo o processo em
que as liberdades foram destroçadas pelas forças nazifascistas. As peripécias
do grande livro se desenvolvem num período histórico de aproximadamente vinte e
cinco anos, entre 1920 e 1945, quando ocorre o esmagamento da Alemanha nazista.
O
personagem-narrador nos diz: “Certa gente não deveria falar em liberdade, razão
e humanidade, melhor que se abstivesse disso por motivos de decência. O
dogmatismo também é uma forma intelectual do farisaísmo. Onde quer que haja
Teologia, o Diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade
complementar à de Deus. O Inferno é tão simbólico quanto o Céu.”
Para
Mann, o adepto das luzes, o termo e o conceito “povo” sempre conserva qualquer
traço de arcaico, inspirador de apreensões e ele sabe que basta apostrofar a
multidão de povo para induzi-la à maldade reacionária. “Falo do povo, porém
daqueles impulsos populares de natureza arcaica, que existem em todos nós, e
para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio
mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver,
unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem
livre e belo.”
Pessoas
como o escritor alemão têm, afinal de contas, suas dúvidas a respeito do acerto
dos “pensamentos do rebanho”, como ele mesmo os denomina. Sabe, entretanto,
perfeitamente diferenciar o povo trabalhador da escória social, que com aquele
não se confunde. “A supremacia das classes ditas inferiores se afigura a mim,
como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da
escória… Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o
que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais
tempo seus privilégios.”
No
nazismo a violência opunha-se à verdade! Pregava-se um abismo entre a verdade e
a força, a verdade e a vida, a verdade e a coletividade. Um grito de horror
surge em Dr. Fausto sob a forma de uma composição musical do maestro
dodecafônico Leverkun: “nesse momento só uma única música pode servir-nos,
somente ela corresponderá a nossas almas: a lamentação do filho do Inferno, a
lamentação humana e divina, que, partindo do indivíduo, mas ampliando-se cada
vez mais, e, em certo sentido, apoderando-se do Cosmo, há de ser a mais
horrenda que jamais tenha sido entoada na Terra. Uma lamentação, um ‘De
produndis’!”
O
mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo,
“revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à idéia do indivíduo,
verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e
rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos
séculos precedentes. “Desarraigados da pálida teoria, seriam relativizados,
abastecidos de sangue e em seguida submetidos a uma instância muito superior, à
da força, da autoridade, da ditadura da fé, de uma forma que igualaria uma
regressão muito inovadora da Humanidade em direção a estados e condições
teocráticos- medievais.”
A
imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o
progresso, o antigo e o novo, o passado e o futuro tornar-se-iam a mesma coisa.
Isso ocorreria ao mesmo tempo em que se concedia ao pensamento a licença de
legitimar a força, “assim como uns seiscentos anos antes, a razão tivera
liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma”, numa referência à Reforma
Luterana.
O
pedagogo, personagem de “Dr. Fausto”, por exemplo, sabia que, sob o
nazifascismo já existia a tendência para distanciar-se do sistema de aprender
letras e soletrar. Em vez disso preferia-se o método de ensinar palavras
inteiras e de ligar a escrita à visão concreta das coisas. Isso representava,
em certo sentido, a abolição da escrita abstrata, universal, não associada a
nenhuma língua e, de alguma forma, a volta à ideografia dos povos primitivos. A
disposição era de sacrificar sem mais as assim chamadas conquistas culturais em
pró de uma simplificação reputada indispensável, assim como os tempos o
exigiam, e que eventualmente pudesse ser qualificada de volta intencional à
barbárie.
O
narrador de Dr. Fausto, Serenus, prevê no início da ação dos nazistas no poder
que “chegaria o dia em que se legitimasse, por razão de higiene nacional e
racial, a não conservação dos elementos mórbidos, a eliminação em grande escala
dos ineptos para a vida e dos débeis mentais”. “Enfatizava-se a intenção da
rejeição de qualquer efeminação humana, produto da era burguesa, um esforço
intensivo por tornar a Humanidade capaz de enfrentar tempos sombrios,
desdenhosa de sentimentos humanitários, mais próximos daquela fase obscura que
precede a origem da Idade Média”.
Mann,
pela boca de Serenus, o narrador, expressará seu ódio ao nazismo nas últimas
páginas do portentoso livro: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à
escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada,
bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar
sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado
sanguinário, cuja agonia atualmente presenciamos, que para citar uma expressão
de Lutero, “pendurou em seu pescoço” o peso de crimes incomensuráveis, e que,
com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do
Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob
cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva,
radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse
regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a
ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que
consciencioso”.
Ele,
Serenus, que se abstivera de combater o nazismo quando ele surgira, ao final do
romance Dr. Fausto realiza um “mea culpa” de sua omissão, retroagindo à
Advertência de 1937: “Será que voltarei a inculcar nos cérebros dos alunos a
ideia de uma cultura na qual a reverência às divindades das profundezas se une
ao culto ético de olímpica razão e lucidez, formando uma só piedade? Mas ai de
mim, receio que nessa década selvagem se haja criado uma geração que entenda a
minha linguagem tão pouco como eu a sua; a mocidade de meu país se me tornou
por demais estranha para que eu possa novamente ser seu mestre. A própria
Alemanha, esse país desventurado, tornou-se-me estranha, justamente em virtude
do fato de eu ter-me abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me
abrigado na solidão.”
Baruch
Spinoza, o autor da “Ética”, filósofo holandês do século XVII, traçava o
caminho para a cidadania em meio à opressão: o ensino! Indivíduos amedrontados
podem ser transformados em cidadãos livres exclusivamente através do processo
educativo e participativo. “Uma cidade onde a paz é o efeito da inércia dos
sujeitos conduzidos como rebanho, e, formados apenas para a servidão, merece o
nome de isolamento, nunca o de Cidade”. (Tratado Político) “O ideal democrático
deve sempre estar unido ao ideal educacional”.
O
racionalismo do filósofo o conduz à conclusão de que “o homem conduzido pela
razão é mais livre no Estado, onde ele vive segundo um decreto comum, que na
solidão, na qual ele obedece somente a si mesmo”. (Ética) A tirania enclausura
o indivíduo no corpo e no intelecto, arrancando-o do convívio social. A
democracia, o oposto da tirania, é o regime que respeita os entes humanos como
singulares, mas coaduna tal cuidado com a força e os direitos coletivos.
“Ninguém transfere seu direito natural a ninguém, mas à maioria da sociedade,
da qual ele é parte.”
Spinoza
ainda tinha particular desprezo por esses senhores “cheios de fausto, com sábia
desrazão e imoralidade.” Esses são os integrantes mais perigosos da elite, pois
ao privarem a massa da verdade, dela retiram o poder de julgar. Quando a
multidão desencadeia sua violência e passa a assumir o espaço público, esses
tacanhos de alma, ricos e poderosos, tremem com toda a razão e reagem com
violência decuplicada.
É
um erro, diz Spinoza, a insolência que marca todos os homens ao assumirem algum
Poder. Mesmos aqueles que recebem apenas parcelas do poder e temporariamente,
tornam-se insolentes. O despotismo dos ricos é adornado por uma “tolice
refinada” e pela “elegante imoralidade”.
O
guarda civil torna-se insolente se tem alguma oportunidade de poder, tanto
quanto o empresário que enriqueceu sob as asas do Estado ou graças à sua
“esperteza”. Dizia Spinoza que se trata apenas de uma questão de “adereços”. O
policial que hoje em dia tem os cassetetes, os sprays de pimenta, balas de
borracha; os milionários que desfilam em carros blindados ou em helicópteros,
que bancam campanhas políticas em troca de negócios onde trapaceiam seus
concorrentes e os cofres públicos, são ambos portadores de igual insolência,
mesma arrogância, apenas apresentam diferentes “adereços”.
O
filósofo Francisco de Oliveira nos alerta que “o caminho do progresso, o
caminho da modernidade havia sido lograr sínteses que ampliavam o espaço da
liberdade”. No entanto, a égide do neoliberalismo sob a qual vivemos, formata
uma nova síntese e esta deixa de ser positiva, na medida em que restringe os
espaços da liberdade para espaços meramente virtuais. Essa síntese negativa
caminha no sentido da negação total da liberdade dos indivíduos, enquanto por
outro lado estende absurdamente a liberdade do capital.
“A
indústria cultural transforma o conhecimento em informação, provocando a perda
da radicalidade do conhecimento: tudo é transformado em informação”. Como
decorrência, o espaço da informação cresce enormemente e encurta-se novamente o
espaço público. “Quem perde com a redução do espaço público é a polis; e a
política perde, pois a polis é lugar de interlocução”. “Em sociedades tão
desiguais como a nossa, a privatização da vida é uma das piores marcas que
reforça a desigualdade”. “No fundo, é a eles (aos dominados) que se endereça a
privatização da vida, pois é o alvo preferencial dessa privatização e do
encolhimento do espaço público”.
Caio
Prado Jr. e Florestan Fernandes criaram importantes categorias dos processos
elitistas e antipopulares que caracterizaram as transformações sociais no
Brasil. Eles demonstraram que o Brasil conservou traços coloniais e não
conseguiu, efetivamente, se configurar como nação. O nosso déficit de cidadania
é por demais conhecido. Com a política neoliberal das últimas décadas, o país
perdeu instrumentos de fixação de uma política nacional, autônoma e soberana.
De certa forma regrediu à situação colonial denunciada por Caio Prado e Florestan.
É
vital para o neoliberalismo sufocar a quebra do isolamento entre as pessoas,
evitar que as ruas ocupadas operem a transformação das massas, do “vulgo” que
se deixa enganar pelo consumismo barato, e pelas notícias ou fakes de whatsaps
e facebooks. É nas ruas, no espaço público; é nas escolas, na educação, nas
Universidades onde se produzirão as políticas capazes de reverter a situação do
avanço das tendências fascistas, antidemocráticas e antinacionais que emergem
contra o país e a sociedade civil.
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