A
consciência democrática brasileira deveria expressar seu desejo manifesto de
que a Lava Jato chegasse ao bom termo, dentro da lei, punindo quem tem que ser
punido, sem nenhum viés partidário e ideológico e sem mover ações persecutórias
contra quem quer que seja. Se assim se conduzisse à Lava Jato prestaria um
grande serviço ao Brasil, combatendo a impunidade e a corrupção, que sempre foi
o grande mal das repúblicas de todos os tempos e é um dos maiores males das
democracias hodiernas. A corrupção articula algumas variáveis que lhes são inerentes:
desigualdade social, concentração de renda e riqueza, ineficiência pública,
desorganização da economia, privilégios dos agentes superiores do setor
público, direitos precários dos cidadãos mais pobres e grave déficit de
cidadania das pessoas. Essas variáveis são caldo de cultura, modus vivendi, da
corrupção.
A
Lava Jato, no entanto, sofre, hoje, duas ameaças. Uma vem do atual bloco de
poder, capitaneado pelo PMDB e avalizado pelo PSDB. Como revelaram as gravações
de Sérgio Machado, um dos objetivos do golpe que derrubou a presidente Dilma
consistiu em bloquear a Lava Jato. Estão em curso dois movimentos para
paralisar a operação de combate à corrupção. O primeiro se desenvolve no
Congresso através da tentativa de aprovação de medidas que visam limitar as
investigações e anistiar o caixa 2. O segundo se desenvolve nas sombras e,
desta articulação, participam setores do Supremo Tribunal Federal, da
Procuradoria Geral da República, do alto escalão do governo Temer e de
parlamentares e senadores do blocão governista. A tese desse grupo que se
esgueira na escuridão é a de que o afastamento do PT do poder, a prisão e o
indiciamento de suas lideranças e a surra que o partido levou nas urnas teriam
sido suficientemente exemplares para dar uma satisfação à sociedade e que,
agora, o mundo político deveria seguir se curso normal. Esse "curso
normal" implica a continuidade da corrupção.
A
segunda ameaça à Lava Jato vem da própria Lava Jato, dos abusos que são
cometidos pelos seus condutores. Em que pesem muitos méritos, os operadores da
Lava Jato cometeram muitos abusos. E, em se tratando de servidores da lei,
jamais os primeiros podem compensar o segundos. Os mais graves abusos podem ser
sintetizados da seguinte forma: a Lava Jato perdeu seu conteúdo republicano e se
transformou num instrumento em favor do impeachment com prisões, vazamentos e
delações politicamente orientadas visando atingir aquele objetivo; conduções
coercitivas que violam a lei; obtenção de delações forçadas visando atingir
Lula e aliviar políticos do PSDB; prisões arbitrárias e desnecessárias, como
foi ao caso de Guido Mantega; escuta ilegal da presidente Dilma e sua
divulgação para fins políticos; ação persecutória a Lula, criando a presunção
de culpa, manipulando a opinião pública e usando a lei para constituir aquilo
que os especialistas chamam de lawfare - guerra contra o inimigo político
manipulando a lei.
De juízes a
justiceiros
A
partir da Lava Jato e, particularmente, do juiz Moro, do apoio, fama e
popularidade que angariou, criou-se no Judiciário brasileiro um movimento,
envolvendo procuradores e juízes, que passou a estimular ações e julgamentos
que não levam em consideração fundamentalmente a lei, mas os juízos morais, os
juízos de consciência dos juízes. Agem e julgam em nome de um suposto clamor
popular, não seguindo os preceitos da lei normal, mas aplicando uma lei
excepcional que se define a partir dos fatos, numa fórmula tão conhecida dos
nazistas que se chamava "lei do movimento". Como se sabe, o próprio
Tribunal Regional Federal da 4ª Região deu aval para que leis excepcionais, que
não estão escritas, possam ser usadas.
Ora,
se as leis excepcionais não estão escritas quem as define? São os próprios
juízes a partir de sua consciência, de sua vontade e de seu arbítrio. Quando os
juízes deixam de julgar a partir da lei, mas a partir de seu arbítrio, deixam
de ser juízes para se tornarem justiceiros, milicianos da Justiça. Se a figura
do miliciano sempre esteve associada a atividades militares, agora, com o
advento dos juízes justiceiros, ela pode ser associada à atividade judicial. Os
milicianos agem numa linha limítrofe entre a legalidade e ilegalidade,
resvalando com frequência para a ilegalidade. O mesmo se pode dizer dos
milicianos do Judiciário. Quanto mais ilegalidades praticam, mais tendem a
confrontar a lei. A vontade de arbítrio e de poder absoluto se exponecializa a tal
ponto e, exemplo disso, foi a tentativa do juiz Moro de impor censura ao jornal
Folha de S. Paulo por este ter publicado um artigo crítico ao referido juiz,
escrito pelo professor César Cerqueira Leite.
Existe
vasta literatura jurídica (Ronald Dworking, etc.) que interdita a legitimidade
de juízes julgarem pela sua consciência moral e não pelas leis e Constituição.
A consciência moral dos indivíduos, e os juízes são indivíduos e não deuses,
vem carregada de preconceitos, de ideologias e de religiosidade. Se fosse
lícito ao juiz julgar pela sua consciência moral, o que equivale dizer, por uma
"lei excepcional" não escrita, não seriam necessárias as faculdades
de direito onde se aprende a técnica jurídica escoimada dos juízos morais. Os
juízes não podem agir comandados pelos seus preceitos morais, pela sua
religiosidade, pela sua ideologia ou pelo clamor popular. Se bem o Direito
tenha fundamento moral não é dado ao juiz o direito de julgar pela sua
consciência moral particular, pois Moral e Direito são duas esferas de
atividade, dois saberes distintos.
Assim,
o juiz não pode escolher critérios variáveis de julgamento, mas deve decidir
sempre segundo o Direito e sua natureza técnica. Somente assim ele pode ser
imparcial - demanda que estava nas origens do constitucionalismo moderno do
qual desabrochou o Estado Democrático de Direito. Demanda que implicou
revoluções e guerras civis para ser estabelecida no velho continente,
particularmente na Inglaterra. Demanda que agora se vê ameaçada no Brasil
quando juízes podem usar a excepcionalidade de sua vontade arbitrária no lugar
da lei, respaldados por Tribunais Superiores.
Os
Tribunais Superiores, destacadamente o STF, se tornaram fator de crise
institucional e de vigência da parcialidade da lei. O STF, por exemplo, mantém
em vigor um mecanismo inconstitucional, dos mais vergonhosos, que é o foro
privilegiado, quando deveria ser o guardião da Constituição, derrogando-o.
Veja-se a desigualdade jurídica que o STF permite: os envolvidos na Lava Jato
que não têm foro privilegiado são julgados com celeridade na primeira
instância. Já os que têm foro privilegiado, envolvidos no mesmo caso, no mesmo
escândalo, levarão anos para serem julgados. Isto viola um dos pilares das
Constituições democráticas modernas: a igualdade perante a lei. Da mesma forma,
o STF permite e estimula que vicejem todo tipo de privilégios nos altos
escalões do poder público, incluindo o próprio Judiciário, e nada faz contra a
PEC 241, que atenta violentamente contra o sentido manifestado do artigo 5º da
Constituição de 1988. O STF, junto com o Congresso, são fautores da
insegurança, da anarquia jurídica e da injustiça em nosso país.
* Aldo
Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política.
http://jornalggn.com.br/noticia/a-lava-jato-e-os-milicianos-do-judiciario-por-aldo-fornazieri
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