Convicto
de que a força-tarefa extrapola todos os limites e atua em parceria com o juiz
Sergio Moro, o que é inconstitucional, o subprocurador-geral da República
Eugênio Aragão afirma que seus colegas de Curitiba criam um “quadro de
absurdos” ao sacrificar a realidade
Eduardo Hollanda e Luiza
Villaméa
Subprocurador-geral
da República, professor de Processo Penal da Universidade de Brasília e
ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, Eugênio Aragão defende que,
diante de um fato complexo, é legítimo investigar a partir de um modelo
teórico. Por princípio, esse modelo deve ser flexível, para ser alterado à
medida que as provas se acumulam e as investigações avançam para um ou outro
lado. Pela análise de Aragão, é justamente nesse ponto que começam os problemas
da Operação Lava Jato: “Os integrantes da força-tarefa, até por uma questão de
vaidade, insistem no modelo original. E ficam socando a prova obtida dentro das
categorias que criaram”.
Em
alguns casos, afirma, a acusação formulada pelos procuradores da República
instalados em Curitiba parece mais “uma questão de fé do que prova”. Foi o que
aconteceu quando os procuradores Deltan Dallagnol e Henrique Possobon
apresentaram denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
criticada até pelos mais ferrenhos aliados da Lava Jato, mas aceita seis dias
depois pelo juiz Sergio Moro: “Trata-se de um jogo combinado, inconstitucional.
Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam em conjunto”.
Aragão comenta ainda que foi o próprio Dallagnol, coordenador da força-tarefa,
que admitiu em entrevista o trabalho conjunto: “Os dois são amigos, dão aulas
na mesma instituição de ensino, agem como se fossem um só”.
Avesso
à ideia de assistir impassivelmente à atuação que considera nociva à
democracia, Aragão escreveu uma carta aberta ao procurador-geral da República
assim que ele, Rodrigo Janot, fez um discurso considerando “desonesto” qualquer
tipo de crítica feita à Lava Jato. Na carta, Aragão lembra inclusive comentário
feito por Janot em encontro entre os dois, no qual o procurador-geral disse que
a Lava Jato era “muito maior” do que ambos. Naquele momento, Aragão tinha
externado seu temor quanto ao impacto provocado pela Lava Jato na economia do
País, também tema de sua entrevista à Brasileiros: “Eles se gabam de ter
devolvido à Petrobras US$ 2 bilhões, mas não veem o estrago que causaram na
economia, que é muito superior. Por baixo, US$ 100 bilhões, se a gente pensar
nos empregos que foram perdidos e nas indústrias, com seus artigos tecnológicos
desmantelados”.
Brasileiros
– O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se tornou réu após uma denúncia
criticada até por seus mais ferrenhos adversários. O ex-ministro Guido Mantega
foi preso num hospital. Como o senhor recebeu essas decisões?
Eugênio
Aragão – É um jogo combinado, inconstitucional, entre o juiz Sergio Moro e os
procuradores. Lá em Curitiba, a Polícia Federal, os procuradores e o juiz atuam
em conjunto. No caso de Guido Mantega, o juiz admitiu, indiretamente, que não
havia motivo para a prisão, ao mandar soltá-lo cinco horas depois. E prisão é
um ato extremamente grave, que estigmatiza a pessoa. O Ministério Público só
pode pedir a prisão a um juiz se houver indícios veementes da autoria de um
crime e se a pessoa for de extrema periculosidade.
No
episódio do ex-presidente, sobraram críticas à apresentação dos procuradores.
Como a denúncia prosperou?
Trata-se
de um grupo de pessoas que estão agindo sem nenhum controle e sem nenhuma
accountability. Estão correndo soltas, completamente descontroladas. Quando as
pessoas se colocam em cima de um pedestal, se achando os salvadores do mundo,
não aceitam sugestões nem conselhos. No episódio de Lula, apresentaram um Power
Point chulé, com uma série de ilações. A apresentação foi de tal generalidade
que eles poderiam colocar qualquer um de nós lá dentro. Outro erro recorrente
do Ministério Público é sacrificar a realidade para manter os seus castelos
teóricos.
Como?
Quando
tem um fato complexo, o Ministério Público trabalha com um modelo. É legítimo,
desde que o modelo seja uma referência preliminar. À medida que a investigação
avança, esse modelo tem de ter flexibilidade para ser alterado, conforme as
novas constatações. Só que os integrantes da força-tarefa, até por uma questão
de vaidade, insistem no modelo original. E ficam socando a prova obtida dentro
das categorias que criaram. O que sai dali é um quadro de Salvador Dali. Um
quadro de absurdos. Nada daquilo que foi apresentado em Curitiba é minimamente
plausível. Parece muito mais uma questão de fé do que prova.
Qual
a origem dessa postura?
A
escola, essa ideia de se criar um modelo de atuação, começou com o mensalão. O
problema é que o processo vai avançando e o modelo ficando superado. E o
Ministério Público insiste em manter o castelo teórico. As teorias científicas
têm de ter flexibilidade. Paul Feyerabend (filósofo austríaco) diz que os
cientistas são todos desonestos porque são extremamente vaidosos. Quando acham
um problema na teoria, eles botam a sujeira debaixo do tapete e fazem um
puxadinho para que a teoria deles continue valendo. Então, as teorias não vão
sendo automaticamente refeitas quando falseadas, mas submetidas a uma
cosmética. E me parece que esses colegas estão agindo muito nessa linha
feyerabendiana.
Dentro
do Ministério Público, não existe uma forma de controlar situações desse tipo?
Para
mim, essa coisa de força-tarefa é para FBI, para Miami Vice (série americana de
tevê). Não tem tradição no Brasil. A primeira que houve foi durante a gestão do
procurador da República Claudio Fonteles, para tratar do caso Banestado, que também,
por sinal, tinha como juiz-coordenador o Sergio Moro.
E
alguns dos procuradores da força-tarefa.
Também.
Não foi uma boa experiência. Tanto não foi que quando Antonio Fernando de Souza
(o sucessor de Fonteles) assumiu, a primeira coisa que fez foi acabar com a
força-tarefa. O procurador-geral seguinte, Roberto Gurgel, também nunca aceitou
força-tarefa. Por duas razões. A primeira é de política processual. Quem cria
uma força-tarefa tem obrigação de apresentar um resultado estrambólico.
Forças-tarefas não são criadas para arquivar processos. Há pressão para
resultados, para uma condenação. Já existe um pré-julgamento.
E
a segunda razão?
É
o processo penal brasileiro, que tem características distintas de outros
países. No processo penal brasileiro, o Ministério Público, a polícia e o
Judiciário são atores extremamente empoderados. Muito mais do que em qualquer
outro modelo no Direito Comparado. No Brasil você tem uma polícia que é tão
forte que derruba ministro da Justiça. Vários ministros da Justiça tiveram que
deixar o cargo porque brigaram com o diretor-geral da Polícia Federal.
Por
exemplo?
Paulo
Brossard. Quando Paulo Brossard começou a se desentender com Romeu Tuma
(diretor da Polícia Federal entre 1985 e 1992), o que aconteceu? Sarney (o
então presidente José Sarney) teve que colocá-lo no Supremo Tribunal Federal.
Foi
preciso tirar do ministério?
Sim,
porque não podia tirar o Romeu Tuma. Ou seja, o diretor-geral é mais forte do
que o ministro de Estado. O Ministério Público, por sua vez, é um império.
Ninguém toca nele. O Judiciário não fica atrás. Tem hoje um poder tão grande
que manda até projeto de lei para o Congresso, para fixar seus vencimentos.
Quando se tem três atores tão empoderados, é preciso um sistema de freios e
contrapesos para controlá-los, o que eu chamo de filtros processuais. A polícia
faz a investigação e qualquer tipo de reclamação de abusos da polícia é
dirigido ao Ministério Público, que pode corrigi-los. Se o Ministério Público
estiver fazendo algum tipo de abuso, o recurso é o juiz, que também corrige. E,
se o juiz estiver fazendo alguma coisa errada, recorre-se à segunda instância.
Então, existe um controle de cada um desses agentes, um pelo outro.
Isso
na teoria.
Numa
força-tarefa, onde existe uma verdadeira mescla, uma mancomunagem desses três
atores e eles trabalhando de mãozinhas dadas, a quem é que o jurisdicionado vai
recorrer?
A
defesa fica inviabilizada?
Não
só a defesa. Inviabiliza qualquer tipo de controle, qualquer tipo de prestação
de contas ao público. Imagine, por exemplo, se alguém quiser reclamar contra a
Lava Jato. Para quem vai reclamar? Até o Tribunal Regional da 4ª Região (a
segunda instância) com muita dificuldade contraria os desígnios da Lava Jato.
O
próprio ministro Teori Zavascki foi criticado pelo juiz Sergio Moro em artigo
de jornal.
Eles
perderam completamente a noção de limite. Não tem ninguém que controle isso.
Se
perderam a noção, por que as instâncias superiores aceitam?
Isso
é uma técnica, a articulação da jurisdição com a mídia. No momento em que o
juiz Sergio Moro encontra apoio quase unânime da mídia, os outros juízes ficam
com dificuldade de justificar publicamente algum tipo de censura. A maioria
fica desconfortável, até porque no Judiciário existe uma cultura de um juiz não
falar mal de outro.
Deixam
de tomar uma atitude mesmo diante de medidas contrárias à lei?
A
cultura do Judiciário é de autocomedimento, de autorrestrição. Quando um juiz
vira o mascote da imprensa, gera uma perplexidade, uma insegurança por parte de
muitos atores do Judiciário. E isso se reflete no processo de decisão, porque a
pressão da opinião pública é enorme. Não é à toa que nos Estados Unidos
qualquer prova que venha a público antes de ser submetida ao Grande Júri é
nula. O Grande Júri não pode ser submetido à pressão da opinião pública. O juiz
é humano como nós. Alguns são mais fortes, outros mais fracos.
Quem
faz crítica corre o risco de ser confundido com quem não quer combater a
corrupção?
Tem
um pouco disso, mas as pessoas que pensam sabem que esse discurso hoje está
desgastado. Quando a corrupção é sistêmica, não se combate apenas com Direito
Penal. Não estou dizendo que o Direito Penal deva cruzar os braços e ver as
pessoas surrupiarem os bens públicos. Não se trata disso, mas de dar mais
ênfase a políticas estruturantes da administração. Para isso, é preciso
entender um mínimo de economia da administração pública, o que o Ministério
Público não entende. Quando é posto na frente de um problema, o Ministério
Público quer um culpado, um bode expiatório. Não quer resolver o problema. E
vem com um discurso moralista.
Como
criar a impressão de que a corrupção no Brasil começou há poucos anos?
A
corrupção sistêmica existe há séculos no Brasil. O problema é eles acharem que
podem resolver essa corrupção sistêmica dando murro em cima da mesa. E na base
de cassetete, colocando todo mundo dentro da cadeia. Não vai ter cadeia para
tanto corrupto no Brasil. Eles vivem sob a ilusão de que o Direito Penal tem
capacidade de resolver isso. O Direito Penal foi feito para a corrupção
eventual. O sujeito, digamos, que tenta tirar proveito de um guarda de
trânsito. Diante de todo um sistema de concorrência pública, de cartelização de
empresas que funcionam na base de remunerações paralelas para atores políticos,
é preciso rever não só a dinâmica política do País, para que os atores
políticos não sejam mais clientela desse dinheiro desviado, como também criar
defesas dentro da administração, para que ela não fique sujeita à extorsão por
parte de agentes privados.
Mecanismos
de transparência ajudariam?
É
um aspecto. Um Estado como o nosso, em que os processos administrativos são
extremamente atravancados, é natural que a peita (o suborno) funcione como uma
forma de liberar o processo de decisão. Se eu quiser construir um frigorífico,
construo em dois meses, mas para botar esse frigorífico para funcionar vou precisar
de oito anos para conseguir as licenças. A administração cria dificuldades para
vender facilidades.
Teria
então que começar diminuindo a burocracia?
Digamos
assim. Se um estrangeiro está querendo investir meio bilhão de dólares no
Brasil, não vou tratá-lo como o Zé das Couves que está querendo abrir uma
banquinha de legumes na esquina. Da mesma forma que os grandes bancos têm
gerentes pessoais para os correntistas de contas mais graúdas, deveria ser
criado um balcão especial para esse tipo de investidor. Ele não tem de correr
atrás dos fiscais, das licenças, de entrar na cozinha do governo. Ele tem que
ficar na sala de visitas. Um gerente geral de investimentos vai dizer o que ele
precisa entregar em termos de papelada, o que deve pagar de taxas. E esse
gerente-geral é quem deveria correr atrás dos órgãos da administração para eles
tomarem a decisão o mais rápido possível sobre as licenças. Precisamos de boas
práticas na administração para lidar com o setor privado.
E
nesse momento, em que há uma série de episódios de corrupção comprovada na
Petrobras, o que a Justiça deveria fazer com os corruptores?
Em
primeiro lugar, para mim, essa prova tirada pela Lava Jato é altamente
suspeita. Eu não sei se tem essa prova toda. Existem informações. Como o Ministério
Público é escandaloso, mas não é nem um pouco transparente, não sabemos ao
certo o que aconteceu, o que não aconteceu. O fato é que não podemos matar a
iniciativa privada, por causa de más práticas na relação com o governo. A gente
não mata barata botando fogo na casa.
A
Lava Jato afeta a economia?
Não
tenha dúvida. Eles se gabam de ter devolvido à Petrobras
US$
2 bilhões, mas não veem o estrago que causaram na economia, que é muito
superior. Por baixo, US$ 100 bilhões, se a gente pensar nos empregos que foram
perdidos e nas indústrias, com seus artigos tecnológicos desmantelados. A
indústria naval está indo para a estaca zero de novo. Já passamos por isso uma
vez, na década de 1980, quando ela quebrou. Conseguimos reconstruir a indústria
naval e estamos quebrando-a de novo.
E
a indústria petroleira?
São
ativos que vão demorar décadas para serem reconstituídos. Outro setor
essencial, a indústria da construção civil, ficou fortissimamente abalado.
Esses gigantes da construção civil são os responsáveis por construir a nossa
infraestrutura. Não adianta pensar como economista liberal, no sentido de que
haverá novas ofertas no dia em que esses gigantes quebrarem. Não é simples
assim. Para entrar no Brasil e substituir uma Camargo Corrêa ou uma Norberto Odebrecht,
as empresas estrangeiras vão querer saber qual é a segurança jurídica para
fazer contrato com o governo. E quais são os custos logísticos, já que não têm
canteiros de obras no Brasil. Até essas empresas estabelecerem a sua logística,
os projetos vão custar mais caros. E tem algumas obras que essas empresas não
sabem fazer, que só as nacionais sabem.
Como
por exemplo?
Uma
estrada na Amazônia, em terreno pantanoso, atravessando um rio atrás do outro.
Quem tem tecnologia para isso são as nossas empresas. Se elas quebrarem, por um
período de cinco a dez anos as obras de infraestrutura vão ficar
comprometidas.Vamos perder o bonde da vez na economia global. Não podemos, por
conta de uma luta moralista, afundar o País. O que vai sobrar? Empresas
quebradas? Políticos de ocasião, os Berlusconis brasileiros?
Como
punir, sem quebrar, uma empresa envolvida em corrupção?
Nós
temos dois modelos possíveis. Converter as multas que forem aplicadas em um
programa social, em projetos que o governo deveria fazer, mas tem poucos
recursos, como na área educacional. Ao mesmo tempo, a empresa seria obrigada a
mudar suas práticas, no sentido de criar um código de compliance e garantir que
essas normas vigorem.
E
a outra alternativa?
Se
as multas forem de tal porte que prejudiquem a própria estrutura da companhia,
a outra possibilidade seria negociar o valor, transferindo parte do controle da
empresa para a União. A União poderia capitalizar a empresa e revender as ações
capitalizadas no mercado, para ressarcir o prejuízo. A empresa muda de mão, mas
sobrevive, até porque os administradores continuam os mesmos, para que seu know
how permaneça.
E
o administrador que foi responsável pelo ato de corrupção?
Esse
deve ser punido, mas é uma questão pessoal. Deve-se distinguir o que acontece
com a empresa e o que acontece com o indivíduo achado com a mão na cumbuca.
Hoje no Brasil as empresas sofrem consequências horrorosas, como a proibição de
contratar com a União. Impedidas de contratar com a Fazenda Pública, que
constrói infraestrutura, elas vão para o buraco. É como jogar fora o neném
junto com a água suja do banho.
E
as medidas contra a corrupção que os procuradores da República mandaram para o
Congresso?
São
fruto de um populismo judicial-legislativo. Para começar, elas não têm nada de
iniciativa popular. Foram gestadas no grupo da Lava Jato. Fizeram um pacotinho
e venderam para a sociedade como se fosse a solução contra a corrupção. O
Ministério Público já faz esse tipo de marketing há algum tempo.
Desde
quando?
Desde
2013, quando a polícia apresentou na Câmara dos Deputados uma Proposta de
Emenda Constitucional, a PEC 37, criando uma exclusividade para a polícia
investigar em matéria criminal. O Ministério Público tomou aquilo como um risco
a seu interesse corporativo. Naquela época, pululavam manifestações por todo
território nacional. E o Ministério Público conseguiu inocular nessas manifestações
o protesto contra a PEC 37, vendendo a ideia de que gente desonesta estava
querendo impedi-lo de fazer a coisa certa. A maioria das pessoas nem sabia do
que tratava a PEC 37, mas o que mais se viu nas manifestações foram cartazes
dizendo “Abaixo a PEC 37”. Ou seja, o Ministério Público usou o movimento
rueiro de 2013 para inocular uma agenda que era tipicamente corporativa.
Todo
o Ministério Público?
É
uma maioria do Ministério Público que pensa assim. Pensa que temos, realmente,
que apoiar as Dez Medidas contra a Corrupção e considera o que está sendo feito
em Curitiba como um modelo de ação. Poucos já viram que é um tiro no pé. Eu sou
um deles, talvez o que mais fala, mas no País inteiro nós talvez tenhamos uns
200 que pensam desse jeito. Isso entre cerca de 20 mil agentes, se
considerarmos o Ministério Público estadual, do trabalho, militar e o federal.
Qual
é o papel do procurador-geral, Rodrigo Janot, nesse contexto?
Na
posse da ministra Cármem Lúcia como presidente do Supremo, ele fez uma defesa
agressiva da atuação da Lava Jato, dizendo ser desonesto qualquer tipo de
crítica feita à operação. E ele prorrogou a Lava Jato por mais um ano, apesar
de todas essas distorções. Ou seja, ele é parte desse problema. Não é a
solução.
Por
isso o senhor escreveu uma carta aberta para ele?
Eu
tinha que fazer isso. Aprendi a fazer denúncia de modo absolutamente frio. Tem
que dizer que no dia tal, fulano de tal, com a intenção tal, fez tal coisa e
com isso prejudicou beltrano de tal. Não vou chamá-lo de meliante, de
vagabundo. Uma denúncia não é um drama. Agora, uma denúncia de 147 páginas,
como a que tinha sido feita contra o ex-presidente Lula, significa muita coisa
mal explicada. Aliás, doutor Aristides Junqueira Alvarenga (procurador-geral da
República entre 1989 e 1995) costumava dizer que denúncia com mais de 20
páginas era inepta. Ou seja, se há um fato claro para incriminar alguém,
pode-se fazê-lo com poucas palavras.
Na
carta aberta ao procurador-geral, o senhor citou o livro das Ordenações Filipinas
para criticar a exibição de investigados e réus como se fossem troféus. Qual é
a dimensão desse retrocesso?
Do
ponto de vista do Direito Penal pós-iluminismo, isso é um retrocesso até a
práticas medievais, porque Foucault (o filósofo francês Michel Foucault), um
estudioso da criminologia moderna, distingue o Direito Penal moderno do
pré-iluminista. No pré-iluminismo, o alvo era o corpo do inculpado. O Estado se
apoderava do corpo. Flagelava, esquartejava, matava o inculpado na fogueira. O
Direito Penal moderno, em vez de se apoderar do corpo do inculpado, se apodera
do tempo. Ele bota o sujeito na cadeia. Ele não gosta de exibir o indivíduo
porque é ciente das suas limitações do Direito Penal. Os operadores do Direito
sabem que podem ser responsabilizados por isso. Nos Estados Unidos, não se pode
nem fotografar um julgamento. Tamanha é a timidez do processo penal que lá tem
pintor para retratar o julgamento. No Brasil, estamos voltando à época em que o
Estado se apoderava da pessoa e a exibia, usava como troféu.
A
Lava Jato faz mal para a democracia?
A
meu ver faz. Faz mal quando os poderes não se autocontêm, quando são exercidos
sem limite. E muito mais ainda quando eles têm alvos que são não muito
claramente explicados para a população, em termos de seletividade. São ruins
também para a democracia quando operações desse tipo servem para emprestar
musculação para demandas corporativas.
Pela
postura crítica, o senhor não é hostilizado por seus pares?
Na
cara não. Mas na rede corporativa, onde todos conversam dentro da instituição,
sou persona non grata já há muito tempo. Não me preocupa, porque eu devo
lealdade não a uma corporação e sim ao serviço público, ao Brasil e sobretudo
ao contribuinte que me paga. Minha crítica não é a colegas. Os colegas, em sua
grande maioria, são pessoas discretas, que fazem o seu trabalho. São
profissionais de boa-fé. A Lava Jato, como forma de atuar, não é regra geral do
Ministério Público.
Qual
a preocupação?
Estou
olhando reflexivamente, como jurisdicionado. E se fosse eu que estivesse
exposto ao superpoder deles? A quem eu iria recorrer? Como cidadão e como
professor de Processo Penal, que também sou, na Universidade de Brasília, tenho
que estar preocupado com isso. Os brasileiros têm que estar preocupados com o
estrago na economia. Como eleitor, tenho que estar preocupado com a influência
desse processo sobre o sistema político. O Ministério Público tem como função
muito nobre, que é o artigo 127 da Constituição, ser o defensor da democracia.
E, agindo dessa forma, não me parece que está desempenhando o papel de defensor
da democracia.
http://brasileiros.com.br/2016/10/os-procuradores-da-lava-jato-estao-descontrolados/
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