Um
dos pioneiros no estudo da judicialização da política no país, o professor Luiz
Moreira deu a seguinte entrevista-dialogo ao 247:
BRASIL
247 -- No ambiente político que faz parte do entorno da Lava Jato, como
interpretar a decisão de Sérgio Moro em transferir a data do depoimento de
Lula? Qual o sentido de alegar preocupação com a mobilização popular?
Luiz
Moreira -- Essa decisão lembra o ditado popular "faça o que eu digo, mas
não faça que eu faço", vez que o juiz da Lava Jato, assim como os demais
membros dessa operação, utilizam-se da mídia para obterem aprovação popular.
Ocorre que as funções da Justiça são contramajoritárias. Deveriam se pautar por
atuação mais discreta, respeitando a liturgia dos respectivos cargos.
BRASIL
247 -- Sabemos que não é isso o que acontece.
Luiz
Moreira -- Eles estão permanentemente na mídia, como se seus cargos e sua
atuação dependesse de votos. Atuando à margem da boa técnica jurídica,
transmitem a convicção de que as campanhas midiáticas -- que eles próprios
estimulam -- vão enfraquecer os índices de popularidade do Presidente Lula.
BRASIL
247 -- Falando em tese, fora do caso concreto: pode-se concluir que, desse
ponto de vista, um réu que tenha baixos índices de popularidade será mais
facilmente condenado?
Luiz
Moreira -- Nesse populismo a decisão judicial dialoga com a aprovação popular.
Assim, decisões judiciais pretendem agradar sentimento de vingança incutido na
população, de modo que a necessária existência de provas passa a ser mitigada,
pois importa derrotar a defesa, obtendo a qualquer custo a confirmação judicial
da acusação. Assim, os princípios são derrotados pela performance, com a forma
se impondo ao conteúdo. Nesse caso, o populismo judicial pode tanto condenar
sem provas quanto absolver acusados contra os quais existe abundância de
provas.
BRASIL
247 -- Parece que estamos admitindo a visão de que a Justiça pode aceitar a
noção de que uma mobilização maior ou menor possa afetar sua decisão. Isso é
saudável?
Luiz
Moreira -- Isso simplesmente representaria o fim do sistema de justiça
brasileiro, que passaria a ser regido pelo sabor das conveniências e dos
humores. Esse populismo judicial, que transforma o judiciário em aferidor da
vontades e dos caprichos, é condizente apenas com ditaduras. Não é admissível
que o sistema de justiça continue flertando com essa postura, que substitui a
lei pela vontade de quem decide.
BRASIL
247 -- O senhor acha que a greve geral pode exercer alguma influência?
Luiz
Moreira -- A insatisfação popular com o Governo Temer, sobretudo com as
reformas da Previdência e Trabalhista, podem fortalecer ainda mais o nome do ex
Presidente Lula, projetando-o como franco favorito para as eleições
presidenciais de 2018. Evidentemente, na medida em que abandonam a técnica
jurídica e convidam o Presidente Lula para uma espécie de "debate
político" sobre o futuro do país, os membros da Lava Jato adentram em terreno
que conhecem muito pouco, facultando ao Presidente Lula exercer o protagonismo
político que exerce há vinte anos.
BRASIL
247 -- Nós sabemos que a Lava Jato possui um componente midiático importante.
Num artigo bastante conhecido sobre a Operação Mãos Limpas, o próprio Sérgio
Moro admitiu que necessita do apoio da mídia para deslegitimar lideranças de
grande apelo popular. Entre estas, obviamente Lula é a mais reconhecida. Ao
alimentar a cobertura da mídia, o próprio juiz não estaria despertando uma
reação popular que agora pode se tornar inconveniente?
Luiz
Moreira -- Embora o juiz Sérgio Moro sugira que se inspirou na Operação Mãos
Limpas, esta operação não se confunde com a Lava Jato. A Mãos Limpas,
diferentemente da Lava Jato, obedeceu ao devido processo legal e ao direito de
defesa.
Algo
mais precisa ser explicitado: os instrumentos de combate à corrupção e de
combate aos chamados crimes do colarinho branco foram desenvolvidos e
implementados a partir dos governos do Presidente Lula. Não é por acaso que a defesa
arrolou dois ex Procuradores Gerais da República, Cláudio Fonteles e Antônio
Fernando de Souza, como testemunha de defesa do Presidente Lula. Ou seja,
pode-se dizer que sem as políticas de combate à corrupção e de combate aos
crimes de colarinho branco implementados pelo Governo Lula não haveria Operação
Lava Jato.
BRASIL
247 -- Quais distorções o senhor aponta no encaminhamento da Lava Jato?
Luiz
Moreira -- Assiste-se no Brasil ao emprego de técnicas de marketing para
legitimar instituições jurídicas, que pretendem "vender" seu produto
aos cidadãos. Essas campanhas de marketing promovidas pela Polícia Federal e
pelo Ministério Público Federal transformam cidadãos em consumidores das
narrativas acusatórias contra seus alvos. Na medida em que a atuação dessas
instituições se desvincula de um fundamento jurídico ou de uma prova a embasar
a acusação ou condenação dos cidadãos, o processo judicial se transforma em
peça de ficção. Por que? Porque importa ao aparato acusatório comprovar a
narrativa criada para condenar os cidadãos, e o que menos importa é se eles são
inocentes. Não por acaso a expressão "feio é perder" é cada vez mais
ouvida nessas corporações.
BRASIL
247 -- Vamos separar o joio do trigo: quais são os elementos de ficção que se
encontram misturados com fatos reais?
Luiz
Moreira -- "O feio é perder" ganhou muitos adeptos no sistema de
justiça e se expressa nas denúncias do Ministério Público em que a descrição
das condutas ilegais dos acusados são substituídas por adjetivos, embrulhadas
num bonito enredo. Quanto mais adjetivo e mais performance, menos provas
existem.
Repare
no seguinte: quando há provas a denúncia não tem mais do que três páginas e,
temendo alguma nulidade, o membro do Ministério Público adota postura cuidadosa
e serena. Quando não há, a apresentação da prova contra o acusado é substituída
por uma argumentação genérica, vaga e imprecisa, em que se cria um enredo para tentar
convencer que há algo reprovável naquela conduta. Desconfie de acusações com
muitas páginas, pois quanto mais páginas, menos prova.
BRASIL
247 -- Para o senhor, o que se pode esperar daqui para a frente?
Luiz
Moreira -- Vislumbra-se no depoimento do Presidente Lula, agora remarcado para
o dia 10 de maio, uma situação espantosa. Do ponto de vista jurídico, chega a
ser surreal que o Presidente Lula ainda responda à acusação de ser proprietário
de um imóvel, o tal triplex, quando a OAS expressa em duas ocasiões ter ela a
posse e a propriedade desse apartamento. Não estamos falando de opinião, de
testemunhos, mas de documentos com fé pública que demonstram, sem a mais mínima
dúvida, que o Presidente Lula não tem qualquer vínculo com esse imóvel.
BRASIL
247 -- E por que Lula continua a ser processado como se fosse o dono do
triplex?
Luiz
Moreira -- Porque os que compõem a Lava Jato são vítimas da narrativa que
criaram. Eles fomentaram uma narrativa cujo propósito consiste em
transformá-los em heróis, cujos poderes decorrem da fé dos cidadãos nos papéis
que desempenham. Neles, a estética tem um papel fundamental: imagens,
indumentárias, chavões, tudo é pensado para confirmar a narrativa de heróis de
uma causa. Como foram longe demais nesse enredo, têm muita dificuldade em
admitir seu erro. Neste momento, só um ato de grande dignidade pode resultar no
triunfo do direito sobre a ficção.
BRASIL
247 -- O senhor considera que Lula tem sido capaz de utilizar o direito de
defesa sem restrições?
Luiz
Moreira -- No processo midiático a que o Presidente Lula está submetido, há um
ambiente hostil à defesa, aquilo que seus advogados corretamente chamam de
guerra jurídica (lawfare). A hostilidade é tamanha que o juiz da causa chega a
sugerir que se a defesa dispensar algumas testemunhas, então obterá ganhos.
Isso
quer dizer que a lógica das delações parece ter contaminado a atmosfera da Lava
Jato, como se a lógica do ganha/perde também coubesse à atuação judicial.
Como
na Lava Jato é frequente que apenas réus presos façam delações, essas são
marcadas pela tentativa de demonstrar aos réus que é "melhor" e mais
"vantajoso" fazer o que os membros da Lava Jato querem. Sugere-se
que, se os réus se dobrarem à vontade deles, terão "ganhos" e se, ao
contrário, resistirem, terão "prejuízos". Um observador isento
facilmente constataria que essa lógica utilitária do "feio é perder"
assumiu ares de cultura corporativa em Curitiba.
Causa
perplexidade que o magistrado sugira aos advogados de defesa que, se
dispensarem testemunhas, então o Presidente Lula será liberado do
"castigo" imposto.
BRASIL
247 -- Quais as consequências possíveis desse comportamento?
Luiz
Moreira -- Como o juiz não pode obrigar o Presidente Lula a estar presente na
oitiva das testemunhas que sua defesa indicou, qual seria a consequência se
Lula não se fizer presente?
O
juiz decretaria sua prisão por desobediência à ordem ilegal? O juiz faria greve
e se negaria a tomar o depoimento das testemunhas? Ou, o que seria ainda mais
grave, essa ordem sugeriria que, caso Lula não esteja presente, ele sofreria as
consequência dessa "afronta", podendo, ao deleite do juiz, ser
condenado sem provas?
Como
se vê, a ausência de juridicidade leva ao reino do arbítrio, em que normas
jurídicas são substituídas pelo gosto de cada um. Ocorre que, todos sabemos, se
o problema é de gosto, cada um tem o seu. Portanto, espera-se mais direito e
menos convicção.
BRASIL
247 -- Como estudioso do Direito, um dos primeiros a debater a judicialização
da política, qual sua maior preocupação neste momento?
Luiz
Moreira -- Causa-me perplexidade que as instituições jurídicas não tenham à
disposição mecanismos que possam blindá-las ante populismos corporativos. Hoje,
a direção dessas instituições jurídicas não cabe aos órgãos de cúpula, mas à
chamada base. Uma análise cuidadosa das atuações do CNJ e do CNMP demonstra que
esse populismo corporativo ao mesmo tempo em que aprisionou a cúpula do
Judiciário e do Ministério Público à aprovação da primeira instância, teve como
consequência o aumento vertiginoso nas remunerações, traduzido em pagamento de
diárias, de vários penduricalhos e de benefícios indiretos, como carros e celulares.
Ou seja, o populismo corporativo gerou poder e dinheiro.
BRASIL
247 -- Ao dizer que a base está dirigindo as instituições jurídicas, o senhor
parece sugerir que o Supremo Tribunal Federal não está cumprindo seu papel. É
uma observação que se pode ler e ouvir com frequência. Como é isso?
Luiz
Moreira -- O Supremo Tribunal Federal já não exerce papel de mediador de
conflitos, já não aponta caminho para as demais instituições, nem soluciona
crises, pois adotou para si o papel de instituição que disputa com as demais
protagonismo político. Se é político o papel do STF, por que a sociedade e as
instituições políticas confiariam a ele a tarefa de dizer o direito?
Muito
se fala da importância da Suprema Corte para os Estados Unidos ou do Tribunal
Constitucional Federal para a Alemanha. Nesses países, nenhum dos membros
desses Tribunais tem o destaque que seus colegas brasileiros têm. Entre nós, os
ministros manifestam opinião sobre todos os assuntos, inclusive os não
judiciais.
Na
medida em que o STF avoca para si a decisão de todas as questões relevantes da
República, se sobrepondo inclusive aos poderes políticos e se impondo à
sociedade, claro que flerta com o descrédito, pois é incapaz de cumprir suas
promessas.
Não
por acaso, a professora alemã Ingeborg Maus atribui a esse conduta oracular o
que denomina de "judiciário como super ego da sociedade".
É
preciso compreender que o fetiche da toga não decorre de sua efetividade, mas
do distanciamento.
http://verdadesoccultas.blogspot.com.br/2017/04/luiz-moreira-denuncia-populismo.html?m=1
Nenhum comentário:
Postar um comentário