domingo, 3 de novembro de 2024

CUBA RESISTE EM MEIO A FURACÕES, SANÇÕES E APAGÕES. Por Ed Augustin

Tradução. Pedro Silva
 
Em meio a dias de apagões e escassez, conversamos com o povo cubano, que está pagando o preço por anos de sanções cada vez mais rigorosas dos EUA.
 
Dizer que Cuba teve uma semana difícil seria um eufemismo. Depois que uma falha na rede no último dia 18 causou quatro dias de apagões em todo o país e um furacão de categoria um atingiu a província oriental de Guantánamo na segunda-feira, matando sete, a energia voltou em grande parte do tempo e as coisas se estabilizaram na ilha.
 
Nilza Valdés Núñez, sessenta e um, de Guanabacoa, Havana Oriental, sente um pouco de alívio. Falei com ela na segunda-feira, um dia depois que sua mãe de oitenta e um anos cozinhou toda a carne descongelada no freezer que seu irmão que vive na Flórida havia comprado para eles.
 
“A falta de eletricidade, de gás e todos os outros problemas que temos aqui”, disse, fazendo uma pausa com lágrimas nos olhos, mas fúria na voz, “fazem você se sentir muito mal”.
 
Em um momento em que mais de um milhão de lares cubanos já estão sem água encanada, os cortes de energia agravaram o problema ao desabilitar bombas hidráulicas. As pessoas carregavam água para suas casas em baldes, buscando-a em cisternas e poços próximos.
 
Antes dos apagões, o preço de rua de um saco com dez pãezinhos em seu bairro era de cerca de 50 centavos (150 pesos). Depois disso, ele disparou para quase um dólar (280 pesos).
 
Praticamente vencida no passado, a fome retornou a Cuba nos últimos anos, com o corte de rações alimentares garantidas pelo Estado. Com a comida escassa estragada e os preços subindo na última semana, alguns que dependem de salários ou pensões do Estado e não têm parentes no exterior para ajudá-los agora estão sentindo o aperto tanto quanto as pessoas que passaram pelo Período Especial após o colapso da União Soviética.
 
Ao mesmo tempo, a resiliência do país é impressionante. Grandes interrupções como essa aterrorizariam pessoas em outros países, mas muitos que conheci as encararam com calma e até com indiferença.
 
Brincando com seu telefone na velha Havana, ao lado de um prédio de três andares em ruínas com uma árvore crescendo em seu telhado, Anyeli Imbert me disse: “Não é assustador para nós quando as luzes se apagam porque estamos acostumados. Não é grande coisa.”
 
A resiliência de outras pessoas se manifesta no humor. “Essas coisas acontecem”, disse Yosvani Valdés, no mesmo quarteirão. “As luzes se apagam no Japão quando há tufões. As luzes se apagaram em Houston algumas semanas atrás quando houve um ciclone lá. As pessoas exageram nessas coisas, mas nós, cubanos, enfrentamos a adversidade com risadas, e sempre encontramos uma maneira de superar.”
 
Uma crise de legitimidade
 
O Partido Comunista de Cuba, no poder, enquanto isso, enfrenta sua maior crise política de todos os tempos. Quatro tentativas fracassadas de fazer a rede elétrica nacional funcionar novamente ressaltaram uma crescente sensação de que o governo está sobrecarregado pela magnitude das múltiplas crises, muitas das quais enraizadas nas abrangentes sanções dos EUA. Economicamente, está falido. Ideologicamente, não promulgou totalmente seu próprio programa de reforma, formalmente acordado no Sexto Congresso do Partido Comunista, em 2011.
 
Em muitos sentidos, a economia de mercado expandida está mantendo o show na estrada: mais alimentos agora são importados mais pelo setor privado do que pelo Estado murcho. Mas a ampliação da desigualdade que ela trouxe também minou a sensação de que todos estão enfrentando a crise juntos — uma grande diferença entre o Período Especial trinta anos atrás e hoje. Pessoas que não tomam café da manhã agora veem autoridades acima do peso na televisão exortando-as a apertar ainda mais os cintos. A justiça social foi corroída, e com ela grande parte da legitimidade do governo.
 
Falando em Washington sobre os apagões, a secretária de imprensa da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, disse na segunda-feira (21) que os Estados Unidos estão “preocupados com os potenciais impactos humanitários sobre o povo cubano”. Rindo como se a alegação fosse absurda, ela acrescentou: “Só quero deixar claro que os EUA não são os culpados pelos apagões na ilha”.
 
Na verdade, as sanções dos EUA são um grande impulsionador da crise energética da ilha. É preciso uma audácia impressionante para negar isso.
 
Washington mira especificamente em petroleiros que entregam o combustível que a ilha precisa para manter as luzes acesas. Ao congelar ativos de navios que entregam petróleo, o Departamento do Tesouro deixa Cuba com menos fornecedores, aumentando os custos de energia na ilha.
 
“As sanções dos EUA são um grande impulsionador da crise energética da ilha. É preciso uma audácia impressionante para negar isso.”
 
De forma mais ampla, na última década, as sanções a Cuba foram aumentadas para níveis sem precedentes. O governo Joe Biden deixou em vigor as sanções mais potentes promulgadas por Donald Trump, incluindo o poderoso Título III de Helms-Burton, que congela o investimento na ilha, e a falsa acusação de que Cuba patrocina o terrorismo, o que a exclui de grande parte do sistema bancário mundial. Economistas calculam que essas novas sanções custam ao Estado bilhões de dólares por ano — deixando menos dinheiro para importar petróleo, consertar a infraestrutura obsoleta e importar painéis solares.
 
“Estamos fazendo tudo o que podemos para tornar o mais difícil possível para Cuba manter as luzes acesas”, disse Fulton Armstrong, que anteriormente atuou como o principal oficial de inteligência dos EUA para a América Latina e agora é membro sênior do Centro de Estudos Latino-Americanos e Latinos da American University.
 
Ele acrescentou que “as pessoas no Departamento de Estado ficaram alarmadas com a eficiência de suas ameaças” ao setor privado. A meticulosidade da aplicação de sanções pelo Office of Foreign Assets Control (OFAC) no Departamento do Tesouro criou uma cultura de “excesso de obediência” no setor privado, ele disse, onde as empresas evitam negociar com Cuba porque as regulamentações ambíguas e a severidade das penalidades fazem com que não valha a pena. “Antigamente, o OFAC tinha vinte ou vinte e cinco pessoas dedicadas a Cuba”, ele disse. “Mas na era digital, você tem essas grandes burocracias para caçar pessoas que podem estar violando nosso embargo e para assediar o setor privado nos EUA, Europa e América Latina.”
 
Durante o governo Biden, houve uma estranha desconexão entre a realidade das sanções e a maneira como elas são faladas. Enquanto o governo Trump se gabava de como suas sanções de “pressão máxima” prejudicariam a ilha, o governo Biden manteve o cerne do regime de sanções em vigor, mas nega categoricamente que tenha algo a ver com as crises de Cuba.
 
Medidas de fachada ajudam nesse esforço. Joy Gordon, especialista em sanções na Loyola University Chicago, apelidou isso de “teatralidade da preocupação humanitária” em um artigo do ano passado. No que ela descreve como um comunicado de imprensa “efusivamente autocongratulatório”, o OFAC anunciou “licenças gerais” para bens humanitários em países sancionados pelos Estados Unidos. “O fornecimento de apoio humanitário para aliviar o sofrimento de populações vulneráveis ​​é central para nossos valores estadunidenses”, disse o OFAC. Mas a severidade do regime geral de sanções significa que as licenças gerais não permitem realmente que mais bens humanitários entrem.
 
“Para a maioria dos dez milhões de habitantes da ilha, o momento é perigoso.”
 
Após as quedas de energia e o último furacão, houve uma onda de organização por pessoas nos Estados Unidos que exigem uma relação diferente com Cuba. Centenas de ativistas compareceram a uma reunião de emergência online esta semana organizada pela Massachusetts Peace Action. Especialistas em Cuba com décadas de experiência assinaram uma carta aberta ao presidente Biden pedindo que ele aliviasse as sanções e fornecesse ajuda estadunidense ao povo cubano durante suas últimas semanas no cargo.
 
Mas a crise energética da ilha não vai acabar tão cedo. Muitas das usinas de energia da era soviética estão se aproximando de meio século de idade. O país mal consegue pagar por peças de reposição e não consegue importar petróleo suficiente para manter as luzes acesas. Colocar a rede elétrica em funcionamento novamente e voltar ao “normal” significa que milhões de pessoas, especialmente aquelas fora de Havana, suportarão longas quedas de energia todos os dias.
 
E os eventos da última semana deram início a um ciclo vicioso que será difícil de romper. Na esteira dos apagões nacionais, o Canadá, de onde vem mais turistas que visitam Cuba a cada ano do que qualquer outro lugar, atualizou seu alerta de viagem para a ilha. A redução da receita do turismo tornaria ainda mais difícil para o governo sair da crise energética.
 
Por fim, analistas dizem que a modernização da rede elétrica de Cuba exigirá assistência externa. Não há muito o que esperar no horizonte. A pressão dos EUA impede Cuba de recorrer ao Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional ou Banco Interamericano de Desenvolvimento para obter apoio. As entregas de petróleo venezuelano, enviadas a Cuba em troca de médicos, enfermeiros e professores trabalhando na Venezuela desde 2000, caíram acentuadamente nos últimos anos. O México ofereceu assistência técnica para manter a rede funcionando. Mas a Rússia e a China, grandes players que certamente foram consultados esta semana, não mostraram sinais de intervir decisivamente.
 
Para a maioria dos dez milhões de habitantes da ilha, o momento é perigoso.
 
Sobre os autores
Ed Augustin é um jornalista britânico baseado em Cuba.
 
https://jacobin.com.br/2024/11/cuba-resiste-em-meio-a-furacoes-sancoes-e-apagoes/

 

sábado, 2 de novembro de 2024

LENDO MARX NO DIA DAS BRUXAS. Por Mark Steven

Tradução
Everton Lourenço

A vida no capitalismo é uma experiência de horror - e não há melhor guia sobre isso do que Karl Marx para entender o porquê.
 
Nossa nova edição impressa sobre "raça e classe" já foi lançada. Assine um de nossos planos ou compre ela avulsa hoje.
 
Como o antagonismo aparentemente onipotente de qualquer filme de terror, o capitalismo não é apenas horrível: ele apavora por ser aparentemente imparável.
 
“O mundo desembestado”, argumenta Chris Harman em um livro sobre o capitalismo zumbi, “é o sistema econômico como Marx o descreveu, o monstro de Frankenstein que escapou do controle humano; o vampiro que suga a força vital dos corpos vivos de que se alimenta ”.
 
Esse diagnóstico suscita a grande questão: como podemos nos orientar politicamente dentro de uma dinâmica social cuja própria essência é o horror?
 
O próprio Karl Marx se fez essa pergunta – ele, cujos escritos transbordam de metáforas e figuras nascidas no gótico, e que valem a pena revisitarmos no Halloween.
 
“O Capital”, nos diz Marx, “é trabalho morto que, feito um vampiro, só pode viver sugando o trabalho vivo – e que quanto mais trabalho suga, mais vive. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou dele”. Ou, em uma formulação mais grotesca:
 
O capital dado em troca da força de trabalho é convertido em bens de necessidade, cujo consumo é o meio pelo qual os músculos, nervos, ossos e cérebros dos trabalhadores existentes são reproduzidos e os novos trabalhadores são gerados.
 
Esses dois trechos, ambos retirados do único livro publicado que o próprio Marx chegou a concluir, soam mais como Mary Shelley do que um trabalho de economia política, invocando vampiros predadores, monstros mortos-vivos e corpos desmembrados.
 
Tanto Drácula quanto Frankenstein já foram lidos como contos sobre o capitalismo. O vampiro é, é claro, um capitalista com uma pulsão infernal pela expansão imperial:
 
Havia um sorriso zombeteiro no rosto inchado, que parecia me levar à loucura. Era esse o ser que eu estava ajudando a transferir para Londres, onde ele poderia, entre seus milhões, e talvez pelos séculos vindouros, saciar sua sede de sangue e criar um novo e crescente círculo de semi-demônios que se empanturarrão dos desamparados. O próprio pensamento me deixava louco. Um desejo terrível recaiu sobre mim de livrar o mundo de tal monstro.
 
O monstro de Frankenstein, por outro lado, é a personificação zumbificada da retribuição proletária:
 
Tudo, exceto eu, estava em repouso ou prazer: eu, como o arqui-demônio, sofria um inferno dentro de mim; e, descobrindo-me insatisfeito, desejava rasgar as árvores, espalhar caos e destruição ao meu redor, e depois me sentar e desfrutar a ruína.
 
Mas, diferentemente dos romances de Stoker e Shelley, o relato de Marx não é apenas gótico. Suas descrições de um modo de produção encharcado de sangue e em carne viva são prenúncios do horror como o vemos no cinema mais recente. O que falta nessas descrições no sentido da moralidade compartilhada pelos romancistas góticos, elas compensam em uma fria racionalidade.
 
 
Os horrores para Marx são irremediáveis e absolutos. Quando ele insiste que o capitalismo é o modo de produção que “escorre da cabeça aos pés, a partir de todos os poros, com sangue e imundície”, ele se compromete, como escritor talentoso e mestre no estilo, a transmitir especificamente esse tipo de horror.
 
Em outras partes de O Capital, quando a imagem do vampiro retorna, a ênfase narrativa muda do predador burguês para o trabalhador explorado e, especificamente, para o seu corpo obliterado:
 
Deve-se reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de produção diferente daquele que entrou. No mercado, ele permanecia como proprietário da mercadoria “força de trabalho” frente a frente com outros proprietários de mercadorias, negociante contra negociante. O contrato pelo qual ele vendeu ao capitalista sua força de trabalho provava, por assim dizer, em preto no branco, que ele se desfazia de si mesmo livremente. Concluída a barganha, se descobre que ele não era um “agente livre”, que o tempo pelo qual ele está livre para vender sua força de trabalho é o tempo pelo qual ele é forçado a vendê-la; que na verdade o vampiro não afrouxará seu domínio sobre ele “enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue a ser explorada”.
 
O vampiro se revela apenas quando já é tarde demais, quando a fachada de sutilezas legais acaba se mostrando um pacto maligno, digno de Fausto, inescapável até a morte de qualquer das partes.
 
Estilisticamente importante é o material citado no final, extraído de uma descrição feita em outro lugar por Friedrich Engels. A citação de Engels confirma que a substância orgânica do capital, sua própria força vital expropriada, é o interior do trabalhador.
 
Embora Marx frequentemente beba das imagens claramente góticas de vampiros e lobisomens, espectros e coveiros, aqui podemos ver que seus relatos sobre o capital também adquirem um gosto por vísceras humanas, com frases mascando e abrindo caminho pelas cartilagens corporais:
 
Podemos dizer que o valor excedente repousa sobre uma base natural, mas apenas no sentido muito geral de que não há obstáculo natural que impeça absolutamente um homem de tirar de suas costas os requisito de trabalho necessários para sua própria existência e sobrecarregar outro homem com eles – não mais do que, por exemplo, obstáculos naturais invencíveis impedem um homem de comer a carne de outro.
 
Como Marx bem sabia, a acumulação capitalista é um crime cujo análogo mais óbvio é o canibalismo. Nascidos para as relações de salário, não somos sujeitos humanos; somos apenas nossa capacidade de trabalhar, o que significa servir nossos diversos órgãos musculares, nervosos e cerebrais – e consumir os de nossos amigos e familiares, bem como os de completos estranhos.
 
Descrições góticas como essas não são meramente decorativas. Em vez disso, elas chegam à própria essência da vida sob o capitalismo. Elas nos lembram como corpos e cérebros são mutilados em mercadorias. Literalmente, precisamos apenas pensar nas deformações, lesões e fatalidades causadas por condições de trabalho tensas em todos os níveis da indústria capitalista, desde traumas neurológicos a ataques cardíacos, ossos quebrados, membros amputados e mortes em massa.
 
De maneira figurativa, cada minuto e cada hora gastos no trabalho assalariado é outro minuto e outra hora em que nossos corpos são conectados a uma vasta máquina que só vive por meio da drenagem de nossas substâncias vitais.
 
A vida sob o capitalismo é a experiência do horror, a liquefação irreversível da substância humana e seu consumo necrofágico. Como o destino cruel das vítimas em qualquer filme de terror, cujos corpos são obliterados para além de qualquer reconhecimento e tão frequentemente ingeridos por outros seres humanos, uma vez que nosso trabalho sucumbe ao valor, essa transformação é totalmente irreparável. Assim reflete o poeta Keston Sutherland em um ensaio brilhantemente nauseante sobre o jargão de Marx: “Tudo o que é carne derrete em osso e vice-versa; e nenhum esforço de escrutínio, vontade ou de imaginação fervilhante, por mais poderosamente analítica ou moral que seja, é capaz de reverter o processo industrial dessa deliquescência. ”
 
A lição pode ser colocada da seguinte maneira: todos nós habitamos a mesma história de terror e todos devemos ficar intensamente revoltados com isso. Mas, mesmo que não possamos desfazer o que já foi feito, essa repulsa ainda pode ser um catalisador para a revolução. Talvez seja isso que Marx estava tentando nos ensinar o tempo todo, com sua marca única de horror gótico.
 
Sobre os autores
Mark Steven
é professor de literatura na Universidade de Exeter. Ele é o autor de "Red Modernism: American Poetry" e "The Spirit of Communism and Splatter Capita".
 
https://jacobin.com.br/2019/10/lendo-marx-no-dia-das-bruxas/


 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O ESPÍRITO DA COMUNA DE PARIS CONTINUA VIVO. Por Kristin Ross


Tradução
Pedro Silva

Pensadores como Karl Marx e Piotr Kropotkin identificaram a comuna como a estrutura política para uma sociedade transformada e radicalmente democrática. Podemos encontrar exemplos disso em algumas das principais lutas sociais e ambientais do mundo hoje.
 
Quando Karl Marx, observando de Londres, leu relatos sobre o que acontecia nas ruas de Paris na primavera de 1871, tudo indica que ele começou a imaginar, pela primeira vez na vida, como são os trabalhadores comuns quando se comportam como donos de suas vidas e não como escravos assalariados.
 
Em A guerra civil na França, Marx observa devidamente as conquistas legislativas dos Communards. Mas foi a forma que suas vidas estavam tomando, a arte e a administração de suas vidas diárias, que prenderam sua atenção e que mudariam o caminho de sua própria pesquisa e escrita na última década de sua vida.
 
As questões que ele abordou nos últimos anos, os materiais que selecionou e as paisagens intelectuais, políticas e geográficas mais amplas que mapeou para si mesmo, todos passaram por alterações substanciais devido ao seu encontro com a forma comunal. Os ideais communards em 1871, por mais elevados que pudessem ter sido, não o preocupavam. Em vez disso, eram as práticas dos communards — a própria “existência real de trabalho” da Comuna, como ele disse — que contavam.
 
A forma comunal
 
Acuriosidade e a admiração de Marx foram reservadas para a descoberta e implementação por pessoas comuns, “finalmente”, de uma forma: “A forma política sob a qual se elabora a emancipação econômica do trabalho”. A emancipação econômica do trabalho, ao que parece, não era uma meta aspiracional ou uma recompensa por bom comportamento. Na forma viva e pulsante de pessoas levando vidas sem roteiro baseadas em cooperação e associação, em sua “colaboração apaixonada” — a frase é de Charles Fourier — essa emancipação já estava materialmente em andamento.
 
Os trabalhadores queriam organizar sua própria vida social de acordo com princípios de associação e cooperação. Eles deram a esse desejo o nome de “comuna”, ecoando o slogan que começou a ressoar em reuniões e clubes de trabalhadores por toda a cidade no final do Segundo Império. A Comuna de Paris foi uma intervenção pragmática no aqui e agora.
 
“A forma comunal é, antes de tudo, sobre pessoas vivendo de modo diferente e mudando suas circunstâncias trabalhando dentro das condições disponíveis no presente.”
 
A forma comunal é, antes de tudo, sobre pessoas vivendo de forma diferente e mudando suas circunstâncias ao trabalhar dentro das condições disponíveis no presente. Nesse sentido, a forma como forma era indistinguível das pessoas específicas que estavam mudando suas vidas, vivendo de modo diferente, naquele momento no tempo e no espaço — os bairros — em que estavam fazendo isso.
 
Em outra de suas formulações bem citadas, Marx escreve sobre os communards “esmagando o Estado”. No entanto, em suas atividades diárias, havia menos destruição acontecendo, como eu vejo, do que uma espécie de desmantelamento passo a passo. O desmantelamento de qualquer quantidade de hierarquias e funções estatais estava em andamento, e mais importante, do que faz da política uma atividade especializada sequestrada para os poucos enfadonhos operando a portas fechadas.
 
Descoberta e redescoberta
 
Onde Marx viu na Comuna de Paris de 1871 a descoberta importante de uma forma, Piotr Kropotkin, ao que parece, viu antes a redescoberta da forma. Assim, uma das mais interessantes entre as muitas reflexões de Kropotkin sobre a forma da comuna não ocorre em seus escritos sobre a insurreição de 1871, mas, ao invés disso, no decorrer de sua longa história de outra revolta francesa — a grande, como ele a chamou no título de seu livro A grande revolução (1789–1793).
 
A alma da Revolução Francesa de 1789, seu único vigor, ele escreve, consistia nos sessenta e poucos distritos que surgiam diretamente de movimentos populares e não se separavam do povo, os distritos que fizeram da cidade de Paris uma vasta Comuna insurrecional: “A novidade que foi introduzida [pelo povo francês] na vida da França foi a Comuna popular. A centralização governamental veio depois, mas a Revolução começou criando a Comuna.”
 
“Marx viu na Comuna de Paris de 1871 a descoberta importante de uma forma; Piotr Kropotkin, ao que parece, viu mais a redescoberta da forma.”
 
De igual importância para os distritos vizinhos da capital, Kropotkin deixa claro, eram as comunas camponesas. Sucessivas insurreições camponesas desempenharam um papel geralmente subestimado, mas decisivo, na radicalização do processo revolucionário entre 1789 e 1794.
 
Foram essas últimas forças do campo que exigiram a abolição dos direitos feudais e a devolução das terras que os senhores e o clero haviam tomado das aldeias a partir do século XVII. Afinal, como Kropotkin nos lembra, o principal instrumento de exploração do trabalho humano naquela época não era a fábrica, que mal existia, mas sim a terra.
 
Foi em direção à posse comunitária de terras que o pensamento revolucionário do século XVIII estava focado. (O mesmo, eu poderia acrescentar, poderia ser dito de nosso próprio tempo.) A revolta das comunas de aldeia no campo, ele escreve, “é a própria essência, a fundação da grande Revolução”. Ao mesmo tempo, Paris “preferiu se organizar em uma enorme comuna insurgente, e essa comuna, como uma comuna da Idade Média, tomou todas as medidas necessárias de defesa contra o Rei”.
 
Foi Paris como Comuna que derrubou o rei, que se tornou a arma dos sans-culottes contra a realeza e os conspiradores, e que empreendeu o nivelamento das fortunas. Os distritos parisienses deveriam manter a iniciativa revolucionária por quase dois anos. Os distritos não eram apenas “o verdadeiro centro e o verdadeiro poder da Revolução”, mas, quando eles morreram, a revolução em si terminou, pois um governo centralizado começou a se solidificar.
 
Democracia direta
 
Para Marx e Kropotkin, a revolução é indistinguível da democracia direta da forma comunal, e essa democracia é uma revolta contra os excessos das formas políticas vigentes. Foi isso que Marx quis dizer quando se referiu à Comuna de Paris como “uma forma política completamente expansiva”. A forma comunal, para Marx e Kropotkin, é ao mesmo tempo o contexto e o conteúdo da revolução, ou, nas palavras de Kropotkin, “o cenário necessário para a revolução e os meios de fazê-la acontecer”.
 
O nome “Comuna”, como tal, representa e abrange o que Kropotkin (e a maioria dos historiadores) entendem ser a força mais radicalmente democrática em ação na Revolução Francesa. Mas Kropotkin está dizendo algo mais do que isso. Revolução, em sua visão, nada mais é do que o conflito entre o Estado de um lado e as comunas do outro.
 
A contradição não é entre o Estado e a anarquia, mas entre o estado e outra organização da vida política, um tipo alternativo de inteligência política, um tipo diferente de comunidade. Na medida em que o Estado recua, as comunas e seu modo de vida florescem.
 
“O espaço-tempo da forma comunal está ancorado na arte e na organização da vida cotidiana e na responsabilidade coletiva e individual assumida pelos meios de subsistência.”
 
Se o papel do Estado é de fato administrar todos os aspectos das sociedades enquanto as domina e as perpetua, então talvez seja melhor para nós não ver a forma Estado como algo final, realizado. Podemos estar melhor vendo-a como uma tendência, uma orientação. O mesmo, então, seria verdade para a forma comunal: é melhor pensar nela não como algo realizado, mas sim como uma tendência, uma orientação.
 
As observações feitas por Marx e Kropotkin sobre a forma comunal na história revolucionária francesa podem nos ajudar a isolar alguns fios ou componentes recorrentes e reconhecíveis da forma política em questão. O espaço-tempo da forma comunal está ancorado na arte e organização da vida cotidiana e em uma responsabilidade coletiva e individual assumida pelos meios de subsistência.
 
Portanto, necessariamente, implica uma intervenção altamente pragmática no aqui e agora e um compromisso de trabalhar com os ingredientes do momento presente. Pressupõe um cenário que seja local, baseado em um bairro ou circunscrito. As distintas dimensões espaciais e a temporalidade da forma comunal se desdobram ao lado — ou dentro do contexto de — um Estado distante, desmantelado ou em desmantelamento, ou um Estado cujos serviços foram tornados redundantes por um grupo de pessoas que assumiram a gestão de suas próprias preocupações.
 
Definindo lutas
 
Meu objetivo nessas breves reflexões não é fornecer uma definição de uma forma que, em sua contingência, falta de abstração e natureza contínua e inacabada, dificilmente poderia se prestar a tal tarefa. A forma comunal, como forma, não se presta a uma definição estática, inalterável ao longo do tempo; ela não se desdobra da mesma forma em todos os lugares do mundo.
 
Na verdade, é inseparável de suas várias instanciações históricas, do que Marx poderia ter chamado de suas várias “existências de trabalho”, cada uma das quais se envolve com as condições particulares do presente, em uma situação particular. E então é para a história que devemos olhar, para a história das lutas materiais reais, para encontrar tais momentos de criações alternativas e reencenações, da melhor forma que pudermos, com iniciativas e experimentos relacionados em nosso próprio tempo, não apenas suas próprias “existências de trabalho” particulares, mas os ecos complexos que elas entretêm.
 
“A forma comunal, como forma, não se presta a uma definição estática, inalterável ao longo do tempo; ela não se desenvolve da mesma forma em todos os lugares do mundo.”
 
Essas são experiências locais que se recusam a ser definidas por um chauvinismo localista. Somente recriando situações passadas — re-situando o que são, de fato, batalhas específicas locais — podemos começar a perceber sua relação com outras experiências em outros lugares temporal e geograficamente.
 
Nos últimos anos, lutas territoriais dinâmicas como a ZAD (que significa “Zona para Defender”) perto da vila rural de Notre-Dame-des-Landes no oeste da França, ou as ocupações de oleodutos na América do Norte, reviveram aspectos da forma comunal e a tornaram sua. Movimentos como a defesa da Floresta Weelaunee em Atlanta (Stop Cop City) estão criando intervenções poderosas na destruição cada vez mais acelerada do meio ambiente que transpira em todos os lugares ao nosso redor.
 
A existência desses movimentos hoje — o próprio fato deles — também teve um efeito secundário, mas, a meu ver, não menos dramático: eles alteram o que é perceptível sobre o passado recente, e especialmente as décadas de 1960 e 1970. As preocupações ecológicas de hoje despertam novos ecos do passado recente que, por sua vez, alteram nossa compreensão do que conta agora.
 
As lutas contemporâneas baseadas na questão da terra nos ajudam a remodelar um novo sentido das principais linhas de conflito da segunda metade do século XX até o nosso tempo. Elas mudam nossa compreensão do que importava então e do que importa (ou do que é útil para nós) agora. Batalhas de longo prazo travadas na década de 1970 por fazendeiros e seus aliados no sul da França e fora de Tóquio para impedir a apreensão de suas terras para desenvolvimento de infraestrutura ou para os militares se tornam visíveis como o que podemos vê-las agora — as lutas definidoras do período.
 
À luz dos movimentos contemporâneos, o cenário teórico recente também se encontra reconfigurado. O marxismo antiprodutivista dos anos 1970 de um pensador como Henri Lefebvre, amplamente ignorado na época na França (embora não nas Américas), assume uma nova ressonância, em grande parte por causa da preocupação de Lefebvre com a questão tão central para a forma comunal da vida cotidiana: seus descontentamentos e suas alternativas. Seus texto, e outros, dos anos 1970 tornam-se recentemente disponíveis para nosso uso em esforços para superar a lógica capitalista no presente por meio da reconquista do tempo e do espaço vividos.
 
Sobre os autores
Kristin Ross
é professora de literatura comparada na Universidade de Nova York e autora do livroLuxo comunal: o imaginário político da Comuna de Paris (Autonomia Literária).
 
https://jacobin.com.br/2024/10/o-espirito-da-comuna-de-paris-continua-vivo/

sábado, 14 de setembro de 2024

SUPERMERCADO É CONDENADO POR ROUBO EM ESTACIONAMENTO PRIVATIVO


A 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal manteve a condenação de um supermercado ao pagamento de indenização por danos morais e materiais a uma consumidora vítima de roubo em seu estacionamento privativo. O colegiado entendeu que o estabelecimento falhou em proporcionar a segurança necessária, o que configurou a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos.
 
O caso teve início quando a autora da ação estacionou seu veículo em área reservada aos clientes do supermercado. Após realizar compras no local, ela foi surpreendida por um assaltante enquanto aguardava sua neta ser colocada na cadeirinha do carro. O criminoso subtraiu o veículo, que posteriormente foi encontrado com danos que somaram R$ 8.827,28. Além disso, a consumidora sofreu transtornos psicológicos devido ao incidente, que ocorreu na presença de sua neta de dois anos.
 
O supermercado, por sua vez, argumentou que não havia provas suficientes de que o crime ocorreu em seu estacionamento e afirmou que o boletim de ocorrência não era evidência suficiente e que o local não tinha controle de acesso restrito. A empresa alegou, ainda, que não haveria relação de consumo, pois não houve prestação de serviço específico ou venda de produto no momento do roubo.
 
Contudo, a Turma Recursal rejeitou os argumentos da recorrente. Os juízes aplicaram o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que equipara a consumidora a uma vítima do evento danoso, conforme o artigo 17 do CDC. Para o colegiado, "houve defeito no serviço colocado à disposição do mercado de consumo, que fomenta a atividade comercial da ré", ao não assegurar a devida segurança no estacionamento disponibilizado aos clientes.
 
Além do ressarcimento pelos danos materiais, a decisão também manteve a indenização de R$ 3 mil por danos morais. O colegiado destacou que a situação vivida pela autora, que envolveu risco à sua integridade física e psicológica, não pode ser tratada como mero dissabor, devendo ser reconhecida como ofensa à sua dignidade.
 
A decisão foi unânime.
 
Fonte: TJDFT
 
https://jornaldaordem.com.br/noticia-ler/supermercado-e-condenado-por-roubo-em-estacionamento-privativo/50689

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

DROGARIA É CONDENADA POR DIVULGAR ACUSAÇÃO DE FURTO NO WHATSAPP


A 3ª turma Cível do TJ/DF manteve a condenação de drogaria ao pagamento de indenização por danos morais a mulher que foi indevidamente acusada de furto. O caso ocorreu após a divulgação de um vídeo em um grupo de WhatsApp, no qual a cliente era identificada como responsável por um crime, o que lhe causou constrangimento público.
 
O incidente aconteceu em 2021, quando a autora foi abordada por um representante da drogaria, que a acusou de furtar produtos do estabelecimento. Após negar a acusação e esvaziar sua bolsa, nada foi encontrado. Mesmo assim, um vídeo mostrando a cliente no local foi divulgado em um grupo de mensagens, acompanhado de comentários que a identificavam como criminosa, gerando grande repercussão.
 
Em sua defesa, a drogaria afirmou que a funcionária responsável pela divulgação do vídeo já havia sido demitida e que o conteúdo foi rapidamente removido. No entanto, a loja alegou que havia razões para suspeitar da autora, argumentando que o vídeo mostrava um comportamento considerado suspeito.
 
Drogaria é condenada por divulgar acusação de furto no WhatsApp.(Imagem: Freepik)
A sentença reconheceu a existência de dano moral e destacou que a divulgação injusta da imagem, junto à imputação do crime de furto, causou grande constrangimento à autora, justificando a reparação financeira. O juiz afirmou que "é inquestionável que o comportamento da ré, ao veicular a imagem da primeira autora, com a imputação do suposto crime de furto, de forma injusta, submeteu-a a situação vexatória e linchamento virtual". O valor da indenização foi fixado em R$ 10 mil, considerado proporcional ao dano sofrido.
 
Ao julgar o recurso, a 3ª turma Cível concluiu que a publicação do vídeo prejudicou a imagem da autora e que o valor da indenização era adequado para compensar os danos causados. Além disso, o colegiado reafirmou que a liberdade de expressão deve ser exercida com responsabilidade, sem violar a honra e a dignidade das pessoas envolvidas.
 
A decisão foi unânime.
 
Processo: 0706871-44.2021.8.07.0019
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/414911/drogaria-e-condenada-por-divulgar-acusacao-de-furto-no-whatsapp

JUIZ RECONHECE DIREITO À PENSÃO ALIMENTÍCIA PARA ANIMAL DE ESTIMAÇÃO


 O magistrado considerou o conceito de relação familiar multiespécie.

 
Moradora de Conselheiro Lafaiete/MG obteve na Justiça o direito de receber pensão alimentícia provisória de 30% do salário-mínimo, destinada ao seu animal de estimação. O cão sofre de insuficiência pancreática exócrina, uma doença que demanda cuidados especiais.
 
Ao recorrer à Justiça, a mulher relatou que mantém um relacionamento com o réu, com quem foi casada. O casal não teve filhos e adquiriu o cão durante o casamento. Atualmente, o animal está sob a tutela da autora, que solicitou a pensão para custear seu tratamento e manutenção.
 
Para embasar o pedido, a tutora anexou ao processo vídeos, fotos e documentos. Nos exames apresentados à Justiça, o nome do réu consta como cliente e proprietário do animal.
 
Ao analisar o caso, o juiz da 1ª vara Cível de Conselheiro Lafaiete, Espagner Wallysen Vaz Leite, considerou que se trata de uma relação familiar multiespécie, conforme definido pelo IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, em que há um vínculo afetivo entre o núcleo familiar humano e o animal de estimação.
 
"Esse conceito vem ganhando espaço na sociedade brasileira, gerando diversas discussões que, inevitavelmente, têm chegado aos tribunais. Nesse processo, é evidente que o animal de estimação possui o afeto de ambas as partes", afirmou o magistrado.
 
Justiça decide que casal terá que dividir gastos com animal de estimação.(Imagem: Freepik)
O juiz também destacou que o cão sofre de uma doença pancreática, necessitando de diversos medicamentos, o que, segundo ele, gera despesas que devem ser compartilhadas por ambos os tutores. "Embora os animais não possuam personalidade jurídica, eles são sujeitos de direitos", acrescentou.
 
Como não foi apresentada nenhuma prova da renda mensal do réu que permitisse avaliar sua capacidade financeira, o juiz fixou a pensão alimentícia com base no salário-mínimo. "A obrigação alimentar deve ser depositada até o dia 10 de cada mês, em conta a ser informada pela autora", determinou o magistrado.
 
O número do processo não foi divulgado pelo tribunal.
 
Informações: TJ/MG.
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/414912/juiz-reconhece-direito-a-pensao-alimenticia-para-animal-de-estimacao

terça-feira, 10 de setembro de 2024

DUPLA PATERNIDADE. JUÍZA PERMITE PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA EM REGISTRO

Magistrada considerou que a paternidade não é apenas um fato biológico, mas também um fato cultural e afetivo.
 
Criança poderá ter dupla paternidade em registro - a biológica e a socioafetivo. Decisão da juíza de Direito Fernanda Mendes Gonçalves, da vara Única de Nova Granada/SP, determinou o reconhecimento da dupla paternidade ao ressaltar que não há prejuízo à criança constar no registro a dupla paternidade.
 
A ação foi proposta para investigar a paternidade de uma criança, com o objetivo de reconhecer tanto a paternidade biológica quanto a socioafetiva. A mãe da criança teve um relacionamento com o pai biológico durante a gestação, mas estabeleceu um relacionamento estável com um segundo homem, que registrou a criança como seu filho e formou um vínculo afetivo com ela desde o nascimento.
 
A juíza ressaltou que a paternidade não é apenas um fato biológico, mas também um fato cultural e afetivo. A decisão destacou a jurisprudência do STJ e do STF, que reconhecem a importância da parentalidade socioafetiva.
 
Segundo a magistrada, para configurar a paternidade socioafetiva, é necessário comprovar a posse do estado de filho, que se manifesta no tratamento entre aqueles que se consideram pai e filho, e o reconhecimento dessa relação perante a sociedade.
 
"Não há prejuízo à criança constar no registro dupla paternidade - biológica e socioafetiva. Ao contrário, a multiparentalidade contempla preceito constitucional que protege a família como base para a formação e o crescimento de crianças e adolescentes."
 
No caso, foi constatado que o pai socioafetivo e a criança mantinham uma relação afetiva genuína, sendo reconhecidos como pai e filho em seu ambiente de convivência. Além disso, o laudo pericial confirmou a paternidade biológica com 99,999% de probabilidade, o que juridicamente é considerado prova certa da paternidade.
 
A sentença julgou procedentes os pedidos, reconhecendo a paternidade socioafetiva do pai registral e a paternidade biológica do pai biológico em relação à criança. A decisão determinou a retificação da certidão de nascimento da criança para incluir o nome do pai biológico, mantendo o nome do pai socioafetivo.
 
Além disso, foi determinado o acréscimo dos sobrenomes paternos, conforme solicitado na petição inicial.
 
A advogada Marcella Ismael Ribeiro, do Ismal & Ribeiro Advogados, atua no caso.
 
Processo: 1001830-75.2023.8.26.0390
O processo tramita em segredo judicial.
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/410775/juiza-permite-paternidade-biologica-e-socioafetiva-em-registro


 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

APOSENTADA RECEBERÁ PENSÃO POR MORTE DE FILHO QUE AJUDAVA EM DESPESAS

A 1ª vara Federal de Jacarezinho, no Paraná, determinou que uma aposentada de 71 anos residente em Cambará receba pensão por morte de seu filho que ajudava nas despesas da casa. O colegiado observou que o homem era solteiro e não possuía descendentes.
 
O cerne da decisão judicial baseou-se na comprovação de que a genitora encontrava-se em situação de dependência econômica em relação ao filho, o qual contribuía para o sustento do lar que ambos compartilhavam em regime de locação.
 
A autora da ação judicial, que perdeu o filho em 2023, alegou depender financeiramente dele para suprir as necessidades básicas da residência. Em sua petição inicial, a aposentada relatou ter buscado o benefício junto ao INSS, contudo, teve seu pedido indeferido sob a justificativa de ausência de comprovação de dependência econômica, o que a motivou a buscar a tutela jurisdicional.
 
Em sua decisão, o magistrado responsável pelo caso destacou que a legislação previdenciária assegura o direito à pensão por morte aos dependentes do segurado falecido, independentemente de o mesmo ser aposentado ou não, a partir do cumprimento de requisitos legais específicos.
 
O juiz enfatizou ainda que o benefício independe de período mínimo de contribuição. "Dessa forma, para o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, basta a comprovação dessa condição. Já para os demais dependentes, exige-se, adicionalmente, a demonstração da dependência econômica. A condição de dependente, em qualquer uma das categorias, deve ser verificada na data do óbito do segurado".
 
Ademais, o magistrado destacou que a concessão da pensão por morte está condicionada à demonstração da existência, na data do óbito, da qualidade de segurado do instituidor e da qualidade de dependentes dos requerentes.
 
"No caso em análise, a condição de segurado do falecido na data de seu falecimento em 24/4/23 é incontroversa, visto que, além de vínculos empregatícios anteriores, ele mantinha vínculo empregatício ativo. O filho falecido recebia um salário médio de R$ 2,840 valor superior ao da aposentadoria mínima da autora, era solteiro e não tinha filhos, o que constitui indícios de que ele arcava com as despesas da autora."
 
"Diante disso, os pais são considerados beneficiários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) quando comprovada a dependência econômica. O filho falecido mantinha vínculo empregatício ativo e a prova testemunhal demonstrou a dependência econômica. Logo, a autora faz jus à concessão do benefício de pensão por morte desde a data do óbito em 24/04/2022, considerando que ela requereu o benefício dentro do prazo legal de 90 dias", finalizou.
 
O Tribunal omitiu o número do processo.
 
Informações: TRF da 4ª região.
 
https://www.migalhas.com.br/quentes/414398/aposentada-recebera-pensao-por-morte-de-filho-que-ajudava-em-despesas


 

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

BANCO E VENDEDORA INIDENIZARÃO VÍTIMA DE GOLPE DE VENDAS ON-LINE

 

A 28ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou uma instituição bancária e uma vendedora a indenizarem um homem que foi vítima do chamado “golpe do intermediário” em uma plataforma de vendas on-line. Cada réu arcará com metade do prejuízo do autor, estimado em R$ 45 mil.
 
Segundo os autos, o requerente se interessou por um anúncio de venda de gado e entrou em contato com o anunciante golpista, que se identificou como corretor e intermediário de outra vendedora. Após vistoriar os animais à venda, o autor fez um depósito do valor total da compra ao intermediário, que não repassou o valor à vendedora original - esta, por esse motivo, não entregou o gado.
 
Em seu voto, o relator designado, Ferreira da Cruz, salientou a responsabilidade do banco, que viabilizou a abertura da conta para a prática criminosa e que, mesmo diante do encaminhamento do boletim de ocorrência após a constatação da fraude, não bloqueou os valores, respondendo ao requerimento apenas dois dias após o ocorrido, quando a conta já havia sido encerrada. “Tal circunstância qualifica a legítima expectativa do consumidor, ainda que por equiparação, de ter à sua disposição mecanismos aptos a agir eficazmente para impedir ou, no mínimo, abrandar as consequências lesivas dessa fraude. Eis o ponto que, na espécie, caracteriza o serviço defeituoso, a pouco importar a incontroversa ação de terceiros fraudadores, inserida dentro dos percalços naturais da atuação do agente fornecedor”, escreveu.
 
Em relação à responsável pelo anúncio original, o relator pontuou que, embora ela também tenha sido enganada pelo golpista, a conduta criminosa só foi possível porque a recorrida identificou alguma vantagem no negócio e chancelou a atuação do estelionatário.
 
O relator manteve entendimento de primeiro grau que absolveu a plataforma em que o anúncio foi veiculado, uma vez que a fraude foi praticada fora do site e, portanto, desconexa do serviço disponibilizado pela recorrida.
 
Completaram a turma julgadora os magistrados Dimas Rubens Fonseca, Michel Chakur Farah, Eduardo Gesse e Rodrigues Torres. A decisão foi por maioria de votos.
 
Fonte: TJSP
 
https://jornaldaordem.com.br/noticia-ler/banco-e-vendedora-indenizarao-vitima-golpe-vendas-online/50636


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

MOTOCICLISTA QUE SE ACIDENTOU APÓS INVESTIDA DE CACHORO SERÁ INDENIZADO

A 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve, em parte, decisão da Vara Única de Colina que condenou empresa e tutores de um cachorro a indenizar motociclista que se envolveu em acidente causado pelo animal. A reparação por danos morais foi reduzida para R$ 30 mil, sendo afastado ressarcimento por danos estéticos. Também foi fixada indenização por danos morais, na modalidade lucros cessantes, consistente na diferença entre o valor pago ao autor pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e sua média salarial. Segundo os autos, o cão escapou do local onde residia – uma fábrica de propriedade dos réus – e foi na direção do motociclista, provocando acidente.
 
O relator do recurso, desembargador Carlos Henrique Miguel Trevisan, salientou que o conjunto probatório revelou, de maneira induvidosa, que o cão envolvido era de propriedade dos réus, informação ratificada pelas testemunhas dos próprios requeridos, seus funcionários. “A responsabilização do dono por dano causado por animal é objetiva e puramente formal, não importando se o dono teve ou não culpa, se mantinha ou não o bicho sob vigilância e guarda. Basta, para sua responsabilização, que o animal tenha causado dano a outrem”, escreveu.
 
Na decisão, o magistrado destacou que a prova pericial apontou que o autor não é portador de dano estético e que sua incapacidade, inclusive laboral, é total, mas não permanente. A respeito da quantia devia a título de lucros cessantes, Carlos Henrique Miguel Trevisan apontou que deve corresponder à diferença entre o salário mensal que o autor recebia na data do fato e o valor do auxílio-doença, evitando-se, assim, o enriquecimento sem causa.
 
Completaram a turma julgadora os desembargadores Neto Barbosa Ferreira e Silvia Rocha. A decisão foi unânime.
 
Fonte: TJSP
 
https://jornaldaordem.com.br/noticia-ler/motociclista-que-se-acidentou-apos-investida-cachorro-sera-indenizado/50612

 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

FILHO DE EXILADO POLÍTICO GAÚCHO DURANTE DITADURA MILITAR GANHA INDENIZAÇÃO DE R$ 100 mil

O dano causado ao autor não foi apenas reflexo da situação de seus genitores, mas uma vivência pessoal intensa de perseguição, deslocamento e trauma. Com essa conclusão, a 1ª Vara Federal de Gravataí (RS) condenou a União ao pagamento de R$ 100 mil de indenização por danos morais a um homem, filho de exilado político. A sentença, publicada em 12 de agosto, é do juiz Bruno Polgati Diehl.
 
O autor, que atualmente possui 65 anos, ingressou com ação narrando que seu pai residia em Novo Hamburgo (RS) e era professor e militante do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) quando aconteceu o golpe militar. Relatou que a família se viu obrigada a se exilar no Uruguai, quando ele tinha cinco anos, e depois no Chile devido à perseguição sofrida. Afirmou que seu pai ficou com depressão quando residiam no Chile, vindo a cometer suicídio em 1978.
 
Em sua defesa, a União requereu o reconhecimento da prescrição da ação. Alegou que a família já foi indenizada pela Comissão de Anistia, não cabendo acumulação da indenização por danos morais ao filho.
 
O juiz observou que o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é de que são imprescritíveis as ações de reparação por danos materiais e morais causados em decorrência da perseguição política durante o regime militar. O STJ, como verificado pelo magistrado, tampouco veda a acumulação da indenização por danos morais com a reparação econômica da Lei da Anistia, recebida pela família do autor em 2012.
 
Os documentos anexados ao caso comprovaram que a família se viu obrigada a fugir do país durante o regime militar. Um deles demonstrou que o nome do pai constava em arquivos sigilosos da ditadura brasileira, que listava asilados e refugiados. Assim, Diehl pôde constatar que a família permaneceu exilada no Uruguai e no Chile entre os anos de 1964 e 1979, e que, mesmo nestes países, a segurança da família não era garantida em função do sistema de cooperação entre os regimes militares da América Latina.
 
“Durante o exílio, a criança não apenas sofreu a perda de sua estabilidade e segurança, mas também enfrentou um ambiente hostil e desconhecido, marcado por deslocamentos forçados e condições adversas impostas pela perseguição política. A mudança para países onde a língua e a cultura eram diferentes só agravou o sofrimento psicológico. A situação foi ainda mais dolorosa após a morte de seu pai, em 1978, por suicídio, resultado do quadro clínico depressivo intensificado pela perseguição que sofrera”, pontuou o magistrado.
 
O juiz ainda destacou que a decisão não serve apenas para indenizar o autor, mas que a responsabilização do Estado reafirma o compromisso ético com os princípios democráticos, “de modo a que práticas como as verificadas durante a ditadura militar nunca mais se repitam”. Ele julgou procedente a ação condenando a União ao pagamento de R$ 100 mil. Cabe recurso ao TRF4.
 
Fonte: TRF4
 
https://jornaldaordem.com.br/noticia-ler/filho-exilado-politico-gaucho-durante-ditadura-militar-ganha-indenizacao-r-100-mil/50610