Já
faz algum tempo que as leis e os procedimentos jurídicos têm sido deturpados e
mal utilizados em diversos lugares do mundo para promover verdadeiras
perseguições contra indivíduos ou grupo de pessoas — organizados sob as mais
diversas formas (grupos políticos, grupos empresariais, grupos temáticos e até
mesmo países).
Charles
Dunlap Jr., general aposentado da Força Aérea norte-americana, escreveu um
importante artigo[1] em 2001 no qual usou pela primeira vez o termo lawfare[2]
para designar esse fenômeno sob o enfoque militar. Segundo expôs à época, o
lawfare seria “a estratégia de utilizar ou mal utilizar a lei em substituição
aos meios militares tradicionais para se alcançar um objetivo operacional”[3].
O trabalho apresentava os Estados Unidos como vítima de lawfare[4], situação
que, na forma atual do fenômeno e tal como o compreendemos, permite em algumas
situações conclusão em sentido exatamente oposto.
Há
estudiosos sobre o tema em importantes universidades do mundo, como Harvard e
Oxford. Trabalhos científicos mostram que o lawfare se desenvolve em três
dimensões: a escolha da lei; a escolha da jurisdição e as externalidades. Estas
últimas estão associadas ao papel da comunicação e da mídia na ocorrência do
fenômeno, com vistas à promover verdadeiras operações psicológicas[5].
Busca-se, em suma, mediante estratégias cuidadosamente definidas de
comunicação, criar um ambiente favorável perante a opinião pública para
viabilizar a prática do lawfare.
No
Brasil, o termo lawfare foi utilizado pela primeira vez em coletiva de imprensa
que fizemos em 10 de outubro de 2016 na condição de advogados do ex-presidente
da República Luiz Inácio Lula da Silva[6]. Na ocasião, a partir de estudos
anteriores e de entrevistas que fizemos com renomados professores que se
dedicam à matéria, como os antropólogos John e Jean Comaroff[7]-[8]-[9], da
Universidade de Harvard, propusemos esse termo para expressar que Lula estava
sendo alvo de uma perseguição política por parte de alguns membros do Sistema
de Justiça a partir da utilização abusiva da lei e dos procedimentos jurídicos
em associação com uma intensa campanha midiática que tinha por objetivo minar a
reputação do ex-presidente e a proteção da garantia constitucional da presunção
de inocência[10]-[11].
O
caso Lula é, indiscutivelmente, um dos mais relevantes paradigmas no mundo de
lawfare com objetivos políticos. Por outro lado, é possível dizer, com sólida
base de apoio, que o lawfare não se limita aos objetivos militares — como foi
afirmado originariamente por Charles Dunlap Jr. — ou, ainda, à perseguição
política. A prática de lawfare com desígnios comerciais e até mesmo
geopolíticos já possui um enorme gama de fatos que permitem constatar o
fenômeno também nessas áreas.
Em
uma face mais simples, é possível identificar o lawfare em iniciativas
jurídicas múltiplas adotadas por uma empresa ou outra forma de associação
contra seus concorrentes ou oponentes. A iniciativa busca inviabilizar tais
concorrentes ou oponentes acionando o aparato regulatório e persecutório do
Estado com acusações frívolas ou desprovidas de suporte probatório mínimo.
Enquanto o concorrente ou o oponente — ou, ainda, seus dirigentes e colaboradores
— são enredados pelas teias do Estado, abre-se a oportunidade de consolidação
ou expansão dos negócios em favor da empresa ou da entidade que deflagrou as
providências jurídicas.
Há,
por outro lado, uma espécie mais complexa de lawfare com finalidade comercial e
geopolítica se desenvolve por meio da utilização de mecanismos transnacionais
de persecução. Como exemplo eloquente, o Foreign Corrupt Act (FCPA), que é uma
lei norte-americana projetada originariamente para punir empresas daquele país
que praticassem corrupção no exterior, atualmente é utilizado para tentar
conferir jurisdição mundial aos Estados Unidos.
Empresas
e empresários de todo o mundo estão sendo punidos e obrigados a pagar elevadas
quantias aos cofres norte-americanos porque acusados, com o auxílio de
autoridades locais, de violação ao FCPA a partir de exóticas
interpretações[12]. Há, também, efeitos colaterais dessas ações dos órgãos
norte-americanos com autoridades locais que acabam por resultar em acordos
comerciais favoráveis a empresas ou a setores daquele país. Exemplos recentes
podem ser mencionados.
Em
2016, empresas brasileiras como a Embraer sofreram atos de persecução do
Departamento de Justiça norte-americano e acabaram por firmar acordos com
aquele órgão estrangeiro, em sintonia com as autoridades locais. Tais acordos
estabeleceram obrigações pecuniárias e de outras naturezas, tais como o
monitoramento interno da companhia. Dois anos depois, foi anunciada uma
operação da Embraer com a Boeing, uma estratégica empresa norte-americana[13].
Difícil crer que apenas uma afinidade comercial tenha orientado esse resultado.
Orde
F. Kittrie, importante estudioso do assunto[14]-[15], cita como exemplo de
lawfare comercial e geopolítico aquilo que ocorreu com a empresa Siemens entre
2006 e 2008. Após se negar a observar o embargo comercial decretado pelos
Estados Unidos ao Irã, a Simens passou a ser alvo de procedimentos
investigatórios em diversos países no mundo, que resultaram no pagamento de
quantias bilionárias a título de multas e indenizações. Independentemente da
ocorrência admitida de práticas indevidas, a motivação para deflagrar as
investigações, segundo o autor, estava ligada à intenção dos Estados Unidos de
elevar a pressão externa contra o Irã — para atender aos interesses
geopolíticos daquele país.
Na
mesma linha, elementos já disponíveis permitem suspeitar que a prisão da
empresária chinesa Meng Wanzhou, uma das principais acionistas da gigante
Huawei, estão ligadas à prática do lawfare. A detenção ocorreu no Canadá a
pedido dos Estados Unidos, em meio a uma intensa disputa comercial entre os
norte-americanos e a China, na qual a Huawei ocupa lugar de destaque. Os
elementos disponíveis também tornam difícil aceitar a tese de que a prisão
nesse momento tão delicado das relações entre tais países foi uma mera
coincidência — e não um capítulo de uma guerra jurídica para fins comerciais e
geopolíticos.
Enfim,
o lawfare é uma prática atualmente realizada com os mais diversos objetivos:
militares, políticos, comerciais e até mesmo geopolíticos. O sucesso no
enfrentamento desse fenômeno está ligado à sua correta identificação e à
utilização de técnicas específicas de combate, que associam o conhecimento
adequado da legislação aplicada, o comportamento que deve ser adotado pelas
vítimas e as associações necessárias entre a resistência jurídica e outras
ferramentas importantes como a investigação e a comunicação.
[1]
DUNLAP JR., Charles. Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian
Values in 21st Conflicts. Artigo apresentado na Humanitarian Challenges in
Military Intervention Conference, Washington, DC, 2001.
[2]
O termo decorre da junção das palavras inglesas “law” e “warfare”. Ao pé da
letra significa “guerra jurídica”.
[3]
DUNLAP JR., Charles. Lawfare Today: A Perspective, em Yale Journal of
International Affairs, 2008, p. 146: “Although I’ve tinkered with the
definition over the years, I now define ‘lawfare’ as the strategy of using – or
misusing – law as a substitute for traditional military means to achieve an
operational objective”.
[4]
O foco do trabalho estava voltado a processos e denúncias envolvendo violação
de direitos humanos nas intervenções militares realizadas pelos Estados Unidos,
sobretudo perante órgãos internacionais especializados nesse tema.
[5]
GOMÉZ, Santiago. Lawfare y operações psicológicas. Disponível em
http://www.agenciapacourondo.com.ar/patria-grande/lawfare-y-operaciones-psicologicas.
[6]
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/defesa-de-lula-diz-que-lava-jato-usa-leis-como-arma-de-guerra-para-desmoralizar-inimigo/
[7]
COMAROFF, John L. e COMAROFF, Jean. Law and Disorder in the Postcolony, em The
University of Chicago Press, 2006, p. 29-30: “In the process, too, it becomes
clear that what imperialism is being indicted for, above all, is its commission
of lawfare: its use of its own rules—of its duly enacted penal codes, its
administrative law, its states of emergency, its charters and mandates and
warrants, its norms of engagement—to impose a sense of order upon its
subordinates by means of violence rendered legible, legal, and legitimate by
its own sovereign word”.
[8]
COMAROFF, John L. e COMAROFF, Jean. Ethnicity, Inc., em The University of
Chicago Press, 2009, p. 56: “Lawfare, the use of legal means for political and
economic ends is endemic to the technology of modern governance. Democratic and
authoritarian states alike have always relied on constitutions and statutes, on
charters, mandates, and warrants, on emergency and exception—on the violence
inherent in the law—to discipline their citizenry”.
[9]
Uma das conversas que tivemos com o Professor John Comaroff está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=skCRotOT1Lg
[10]
Nesse sentido é o que expusemos em nota à imprensa divulgada em 17/10/2016.
Disponível em:
http://www.averdadedelula.com.br/pt/2016/10/17/defesa-identifica-taticas-de-lawfare-em-denuncia-contra-lula/.
[11]
O Professor John Comaroff concedeu entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em
18/11/2016 na qual expôs essa situação:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1829175-professor-de-harvard-ve-presuncao-de-culpa-contra-lula-na-lava-jato.shtml
[12]
Mike Koehler, em interessante artigo, explica que o FCPA vem sendo utilizado
sem qualquer escrutínio judicial pelo Departamento de Justiça dos Estados
Unidos para impor sanções a empresas dos mais diversos países a partir de
interpretações e teses jurídicas bastante discutíveis. Disponível em:
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1705517.
[13]
A nota à imprensa divulgada pela Embraer para anunciar a operação comercial
está disponível em: https://ri.embraer.com.br/list.aspx?IdCanal=PXlq+a4Z+bixVnURyPcmLw==
[14]Disponível
em:
https://scholarlycommons.law.case.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=1162&context=jil
[15]
Orde F. Kitrrie é autor da obra Lawfare: Law as a weapon of war (Oxford,
University Press, 2016).
Cristiano
Zanin Martins é sócio do Teixeira, Martins e Advogados.
Valeska
Teixeira Z. Martins é sócia do escritório Teixeira, Martins & Advogados.
Revista
Consultor Jurídico
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
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