No
momento em que escrevo estas linhas, o escritor Cesare Battisti, de 63 anos,
estrangeiro regularmente residente no Brasil por decisão de todas as instâncias
cabíveis dos poderes públicos deste país, exerce o direito mais fundamental de
todo ser humano: o de preservar, por qualquer meio, sua vida e sua liberdade.
Cada
dia que Battisti sobrevive à caçada policial é um desgosto para Jair Bolsonaro,
impedido de pôr em prática sua concepção ditatorial que encara o cargo de
Presidente da República como uma carta branca para qualquer tipo de arbítrio.
Em
abril deste ano, o então candidato do PSL, em conversa com o embaixador da
Itália, lançou uma de suas típicas bravatas: “No ano que vem, vou mandar um
presente para vocês: o Cesare Battisti!”. O assunto só voltou à tona por conta
dessa promessa descabida.
Battisti,
ex-ativista de esquerda condenado (injustamente, conforme explicarei logo
adiante) a prisão perpétua pelo Judiciário da Itália, mora no Brasil desde
2004. É casado com brasileira e tem um filho brasileiro. Sempre respeitou as
leis deste país e exerce dignamente sua profissão.
A
questão judicial envolvendo sua permanência no Brasil foi definitivamente
resolvida em dezembro de 2010, quando o presidente Lula, exercendo um poder a
ele atribuído pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tomou a decisão de rejeitar
o pedido de extradição feito pelas autoridades italianas.
Sabe-se
lá quais foram as obscuras negociatas de bastidores entre Michel Temer e o
futuro governante que levaram o impostor em final de mandato a usar a
extradição de Battisti como um agrado ao seu sucessor, como se fosse um desses
brindes de fim de ano.
O
fato é que, em outubro, Temer revogou a decisão de Lula em favor de Cesare
Battisti, num ato que foi definido com muita clareza pelo jornalista Josias de
Souza, blogueiro da Folha de S.Paulo e figura totalmente insuspeita de
esquerdismo:
“Quando
o assunto é cadeia, Michel Temer vira um presidente paradoxal. Denunciado duas
vezes (corrupção passiva e obstrução de justiça), investigado em outros dois
inquéritos (corrupção e lavagem de dinheiro), Temer pega em lanças no Supremo
pela prerrogativa de livrar corruptos da cadeia. Com o mesmo ímpeto, ele
guerreia pelo direito de extraditar o condenado Cesare Battisti para um cárcere
na Itália.”
Sejam
quais forem os motivos da decisão de Temer, ela abriu o caminho para que o juiz
Luiz Fux inaugurasse prematuramente as perseguições políticas da era Bolsonaro
ao determinar, na quinta-feira dia 13 de dezembro, a prisão de Battisti, que
desde então tem conseguido se manter em liberdade, driblando os policiais
mobilizados por sua captura. Para sua sorte, o Brasil é um país de 8 milhões de
quilômetros quadrados.
Curiosamente,
foi o mesmo Fux quem, na década passada, quando o caso tramitava no STF, deu a
liminar que travou a extradição, gerando o impasse que culminou com decisão do
STF de delegar a Lula a palavra final. Segundo Fux, não se trata de uma
incoerência e sim de levar em conta que as “conjunturas sociais” de hoje são
bem diferentes daquelas vigentes em 2010. Assim funciona o STF: uma ministra
(Rosa Weber) que mantém Lula na prisão apesar de ser dizer favorável à sua
soltura, um ministro (Fux) que admite mudar suas próprias decisões de acordo
com os ventos da política.
Diante
de tudo isso, é importante que os brasileiros realmente comprometidos com a
democracia e com os valores humanistas básicos tomem posição em solidariedade a
Cesare Battisti neste momento crucial em que se colocam em jogo, ao mesmo
tempo, seu destino pessoal e nosso destino coletivo como país (supostamente)
civilizado.
Apresento
aqui, de forma resumida, cinco razões em favor de que Cesare Battisti possa
permanecer no Brasil com sua família, tranquilamente, como lhe é de direito:
1.
O mais importante: Battisti é inocente. O episódio da sua condenação, na
Itália, é um escândalo comparável à farsa judicial armada por Sergio Moro
contra o ex-presidente Lula. O italiano foi preso, no final dos anos 1970, por
sua participação num grupo de extrema-esquerda, e condenado a uma pena de 13
anos por vários delitos políticos, como subversão. Fugiu da cadeia poucos meses
depois e reapareceu na França, onde obteve asilo político. Só então, as
autoridades judiciais italianas, como uma espécie de vendetta (vingança),
decidiram acusá-lo pelo assassinato de quatro homens (três deles, fascistas
envolvidos em diversos tipos de violência). Sem qualquer prova, somente com
base em delações premiadas de ex-companheiros que dessa forma conseguiram
aliviar suas penas, Battisti foi condenado a prisão perpétua. Para saber mais
sobre o assunto, recomendo o excelente livro de Carlos Lugarzo, “Os Cenários
Ocultos do Caso Battisti” (Geração Editorial, 2012).
2.
Vamos falar claro: Battisti está sendo perseguido porque é um homem de
esquerda. O caso é de alto interesse à ascendente extrema-direita italiana,
doidinha para faturar politicamente com o show da extradição. Não por acaso, o
político italiano que já está com as malas prontas para viajar ao Brasil e
levar o prisioneiro à Itália, algemado, é o vice-primeiro-ministro Matteo
Salvini, um notório fascista conhecido pelo seu ódio aos imigrantes. No Brasil,
a polêmica em torno do assunto acompanha, em linhas gerais, a clivagem
ideológica existente no país. A extradição de Battisti, desde o início, é uma
bandeira dos reacionários dos mais diversos matizes (com a triste exceção da
revista Carta Capital, que optou por engrossar o coro dos linchadores do
escritor). Entregar Battisti à Itália favorece a campanha para desmoralizar a
gestão presidencial de Lula e significa, na prática, o sinal de largada para um
grande pogrom contra os partidos de esquerda, os movimentos sociais e todos
aqueles que Bolsonaro chama de “os vermelhos”.
3.
Ao pressionar o Brasil, por diferentes meios e até os dias de hoje, o governo
da Itália põe em jogo a soberania política do nosso país. Na longa novela do
Caso Battisti, não faltou nem mesmo um deputado italiano, Ettore Pirovano, que,
em 2009, ao criticar o ministro da Justiça Tarso Genro por sua recusa em
conceder a extradição, recorreu ao infame preconceito existente na Europa
contra as mulheres brasileiras. “O Brasil é mais conhecido por suas dançarinas
do que por seus juristas”, ironizou. Entende-se, aí, o que esse elemento quis
dizer por dançarinas.
4.
A extradição de Battisti é uma completa aberração do ponto de vista jurídico.
Como bem lembrou o jornalista Celso Lungaretti no seu blog Náufrago da Utopia,
“a sentença que a Itália quer fazer valer não só prescreveu em 2013 (trocando
em miúdos: também está extinta), como se trata de uma condenação à prisão
perpétua, ao passo que as leis brasileiras proíbem a extradição de quem vá
cumprir no seu país de origem uma pena superior a 30 anos de reclusão”.
5.
Finalmente, a extradição de Cesare Battisti representa uma grave violação ao
princípio da segurança jurídica. A decisão de Lula, que negou o pedido de
extradição em 2010, foi confirmada no ano seguinte pelo STF. Sim, depois de
tudo, o decreto de Lula ainda foi submetido ao STF, que o aprovou no dia 11 de
junho de 2011, por seis votos contra três. Os seis juízes que votaram a favor
da decisão de Lula e pela rejeição das queixas da Itália foram Fux (impressionante!),
Levandowski, Marco Aurélio, Carmen Lúcia, Ayres de Brito e Joaquim Barbosa. Em
suma: assunto encerrado, julgado em todas as instâncias possíveis muito além do
que seria imaginável. Desde então, Battisti já não é mais um refugiado
político, e sim um imigrante com residência permanente, condição que mantém até
o presente momento. Aceitar sua prisão e entrega a um governo estrangeiro
significa admitir que as garantias jurídicas já não valem mais nada no Brasil,
que qualquer cidadão ou cidadã pode a qualquer momento ser vítima do arbítrio
do Estado, exatamente como ocorreu durante os 21 anos da ditadura militar – os
tempos da tirania, que os fascistas estão tentando implantar novamente, mas não
conseguirão.
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