Lembro-me de um filme antigo, se não me engano de nome Bar Esperança, dirigido por Hugo Carvana, contando com um grande elenco da época. Nele havia um artista plástico representado por Anselmo Duarte que teve a brilhante idéia de fazer uma exposição de quadros dentro do banheiro do bar. Quando as pessoas adentraram ao recinto para conferir a obra, depararam-se com uma porção de telas em branco. Em um primeiro momento, todas ficaram perplexas e decepcionadas. Acontece que o artista fez um discurso explicativo de sua obra tão bem elaborado, ligando-a ao vazio existencial, que de um momento para o outro, todos acabaram enxergando nas telas vazias uma obra de arte excepcional. Na verdade, se abstraíssemos o discurso explicativo, os quadros não passariam daquilo que realmente eram: telas em branco.
Digo isso porque eu tive uma impressão semelhante ao ler alguns dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal na questão da demarcação das terras indígenas da reserva Raposa Serra do Sol. Até o momento, tudo indica que a decisão será no sentido de manter a demarcação contínua da reserva, determinando a retirada dos arrozeiros. É claro que sou favorável à decisão dos julgadores. Apenas achei que eles chegariam a tal conclusão baseados em uma razão superior como por exemplo, um direito natural anterior e subjacente a qualquer ordem jurídica positivada. Um argumento irrefutável que desse um caráter de eternidade e imutabilidade a uma decisão na qual ficasse assegurada aos índios a posse das terras que ainda ocupam, eis que as restantes já lhes foram tomada há mais de quinhentos anos.
Acontece que não foi assim. Como eu estou no rol daqueles que acreditam que a nossa civilização está falida, já que conseguiu comprometer o planeta quase que de forma irreversível e que a saída estaria justamente nessas culturas primitivas que ainda não foram contaminadas e possuem uma natural harmonia com o meio ambiente, eu li os votos dos ministros, na esperança de haurir deles alguma esperança, alguma luz que pudesse iluminar gerações futuras e me dar a certeza que tal decisão seria perenizada no tempo.
Nada disso. Deparei-me com discursos bem elaborados, malabarismos jurídicos, linguagens rebuscadas bem como os mais diversos recursos interpretativos configurando uma obra de arte sob o ponto de vista do direito. No final, apesar de todos os rococós jurídicos, o inevitável positivismo (a denominada praga que assola o ensino e a prática jurídica). Todos aplicaram a letra fria da lei, principalmente o art. 231 da Constituição Federal de 1988, que em essência, reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Dei graças por terem aqueles constituintes incluído tal dispositivo no texto constitucional, coisa que só ocorreu em virtude do momento histórico em que ela foi elaborada. Era como se estivéssemos encerrando definitivamente uma fase de profundo obscurantismo introduzido pela ditadura militar. Este o motivo da presença de alguns fragmentos de utopia em nossa carta magna.
Acontece que ultimamente tenho lido e ouvido várias correntes políticas aventando a necessidade de promulgarmos uma nova constituição, sob as mais diversas justificativas. Entre outras, a de que ela, tal qual os índios, estaria obstaculizando o “desenvolvimento econômico brasileiro”.
Aí é que reside o perigo. Qualquer estudante de direito sabe que apenas o poder constituinte derivado encontra limites materiais contidos no texto constitucional e está condicionado às regras formais do procedimento legislativo. Já, no que concerne ao poder constituinte originário, aquele que tem a finalidade de promulgar uma nova constituição, ele não deriva de nenhum outro, não sofre qualquer limite e não se subordina a nenhuma condição. E, frente a uma nova constituição não resistem sequer o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ou seja, nada impede que amanhã uma nova constituinte, patrocinada por interesses tão poderosos quanto escusos, possa escamotear dos índios a vitória que eles estão obtendo neste momento. Não apenas os índios poderão perder, mas também os direitos sociais atribuídos aos trabalhadores e todos os direitos e garantias fundamentais contidas no art. 5º da atual constituição, hoje erigido à condição de cláusula pétrea (não pode ser modificado por emenda constitucional) mas que poderá deixar de sê-lo em uma constituição posterior.
Assim sendo, exorto aos que lerem este artigo para que fiquem surdos aos discursos atraentes dos que apregoam a necessidade de uma nova constituinte como se fosse a redenção da nação brasileira. Cuidado, por trás deles podem estar escondidas hienas famintas, loucas para se apoderarem do que ainda nos resta como muralhas de defesa contra os poderosos interesses capitalistas, principalmente aqueles que vêm de outras terras não tão distantes assim.
Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
Digo isso porque eu tive uma impressão semelhante ao ler alguns dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal na questão da demarcação das terras indígenas da reserva Raposa Serra do Sol. Até o momento, tudo indica que a decisão será no sentido de manter a demarcação contínua da reserva, determinando a retirada dos arrozeiros. É claro que sou favorável à decisão dos julgadores. Apenas achei que eles chegariam a tal conclusão baseados em uma razão superior como por exemplo, um direito natural anterior e subjacente a qualquer ordem jurídica positivada. Um argumento irrefutável que desse um caráter de eternidade e imutabilidade a uma decisão na qual ficasse assegurada aos índios a posse das terras que ainda ocupam, eis que as restantes já lhes foram tomada há mais de quinhentos anos.
Acontece que não foi assim. Como eu estou no rol daqueles que acreditam que a nossa civilização está falida, já que conseguiu comprometer o planeta quase que de forma irreversível e que a saída estaria justamente nessas culturas primitivas que ainda não foram contaminadas e possuem uma natural harmonia com o meio ambiente, eu li os votos dos ministros, na esperança de haurir deles alguma esperança, alguma luz que pudesse iluminar gerações futuras e me dar a certeza que tal decisão seria perenizada no tempo.
Nada disso. Deparei-me com discursos bem elaborados, malabarismos jurídicos, linguagens rebuscadas bem como os mais diversos recursos interpretativos configurando uma obra de arte sob o ponto de vista do direito. No final, apesar de todos os rococós jurídicos, o inevitável positivismo (a denominada praga que assola o ensino e a prática jurídica). Todos aplicaram a letra fria da lei, principalmente o art. 231 da Constituição Federal de 1988, que em essência, reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Dei graças por terem aqueles constituintes incluído tal dispositivo no texto constitucional, coisa que só ocorreu em virtude do momento histórico em que ela foi elaborada. Era como se estivéssemos encerrando definitivamente uma fase de profundo obscurantismo introduzido pela ditadura militar. Este o motivo da presença de alguns fragmentos de utopia em nossa carta magna.
Acontece que ultimamente tenho lido e ouvido várias correntes políticas aventando a necessidade de promulgarmos uma nova constituição, sob as mais diversas justificativas. Entre outras, a de que ela, tal qual os índios, estaria obstaculizando o “desenvolvimento econômico brasileiro”.
Aí é que reside o perigo. Qualquer estudante de direito sabe que apenas o poder constituinte derivado encontra limites materiais contidos no texto constitucional e está condicionado às regras formais do procedimento legislativo. Já, no que concerne ao poder constituinte originário, aquele que tem a finalidade de promulgar uma nova constituição, ele não deriva de nenhum outro, não sofre qualquer limite e não se subordina a nenhuma condição. E, frente a uma nova constituição não resistem sequer o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ou seja, nada impede que amanhã uma nova constituinte, patrocinada por interesses tão poderosos quanto escusos, possa escamotear dos índios a vitória que eles estão obtendo neste momento. Não apenas os índios poderão perder, mas também os direitos sociais atribuídos aos trabalhadores e todos os direitos e garantias fundamentais contidas no art. 5º da atual constituição, hoje erigido à condição de cláusula pétrea (não pode ser modificado por emenda constitucional) mas que poderá deixar de sê-lo em uma constituição posterior.
Assim sendo, exorto aos que lerem este artigo para que fiquem surdos aos discursos atraentes dos que apregoam a necessidade de uma nova constituinte como se fosse a redenção da nação brasileira. Cuidado, por trás deles podem estar escondidas hienas famintas, loucas para se apoderarem do que ainda nos resta como muralhas de defesa contra os poderosos interesses capitalistas, principalmente aqueles que vêm de outras terras não tão distantes assim.
Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
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